Menu Mobile

Conteúdo da página

Comparato quer agentes pagando por crimes da ditadura militar

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007 às 16h02

Brasília, 17/12/2007 – O presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da Ordem dos Advogados do Brasil e renomado constitucionalista brasileiro, Fábio Konder Comparato, encaminhou hoje (17) ao Ministério Público Federal representação para que o Estado tome a iniciativa de abrir inquérito e propor ação penal contra os agentes ou funcionários públicos que foram responsáveis por danos ou pelo cometimento de crimes contra cidadãos durante o regime militar. A representação, embasada em artigos da Constituição que versam sobre a manutenção, validade e garantia dos direitos humanos, foi enviada à procuradora da República em São Paulo, Eugênia Fávero.

No documento encaminhado ao MP, Comparato lembra que, durante o regime político inaugurado com o golpe de 1964, agentes públicos, principalmente da União Federal, praticaram diversos abusos e atos criminosos contra opositores políticos ao regime, em violação ao princípio da preservação da segurança pessoal. “Milhares de indivíduos foram assassinados, com ou sem ocultação do cadáver, ou então submetidos a seqüestro, cárcere privado, abusos sexuais e torturas de toda sorte”. Naquele mesmo tempo, prosseguiu o constitucionalista, muitas pessoas foram punidas, demitidas ou compelidas a se afastar das atividades que exerciam, bem como impedidas de exercer ocupações profissionais em virtude de pressões ou expedientes sigilosos.

Fábio Konder Comparato lembrou que o próprio governo já reconheceu às vítimas ou a seus herdeiros o direito a receber uma indenização pecuniária, invocando a idéia de “conciliação e pacificação nacional”. “O reconhecimento desse direito a indenização implicou, inquestionavelmente, no reconhecimento oficial de uma responsabilidade civil do Estado”, destacou o jurista. “A esse título, já foram despendidas pela União (e também por alguns Estados federados) elevadas somas pecuniárias. Mas, até hoje, nenhuma ação regressiva foi intentada contra os agentes ou funcionários causadores dos danos assim ressarcidos com dinheiro público”, complementou.

Nesse contexto, Comparato lembrou que a Constituição Federal de 1988 é explícita ao afirmar que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviço público, têm responsabilidade objetiva diante dos administrados, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, vierem a causar (art. 37, § 6º). Mas devem intentar contra estes, em caso de dolo ou culpa, a competente ação regressiva”. Comparato afirma, no entanto, que a doutrina jurídica nacional não tem salientado que a propositura dessa ação de regresso contra o agente público causador do dano é um dever do Estado e, até o momento, nenhuma medida judicial foi tomada para fazer cumprir esse mandamento constitucional.

“É por essas razões que o signatário toma a liberdade de apresentar a presente representação, confiante em que o Ministério Público Federal saberá tomar as medidas cabíveis, a fim de cumprir a sua função superior de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, afirmou o presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da OAB.

A seguir a íntegra da representação encaminhada pelo constitucionalista Fábio Konder Comparato à procuradora da República, Eugênia Fávero:

"À Excelentíssima.
Doutora Eugênia Fávero
Digníssima Procuradora da República em São Paulo

Senhora Procuradora da República:

Tenho a honra de representar a Vossa Excelência, com base nas considerações a seguir expostas, a fim de que o Ministério Público Federal tome a iniciativa das providências que entender cabíveis.

1.– A teoria atual dos direitos humanos reconhece que eles se organizam num sistema regido por princípios, isto é, normas de caráter suprapositivo, com máxima abrangência e abstração, as quais se concretizam por meio de regras positivas, de conteúdo normativo preciso e campo de abrangência delimitado.
Em razão do seu caráter suprapositivo, os princípios de direitos humanos, fundados na consciência ética da coletividade, vigoram mesmo quando o Estado não os reconhece em seu ordenamento jurídico e os viola em sua prática política. No mundo de hoje, escusa lembrar, ninguém dirá que a escravidão ou a tortura policial, mesmo quando admitidas oficialmente pelas autoridades estatais, sejam juridicamente neutras.
Por outro lado, é sabido que a relação de direitos humanos comporta, do lado passivo, deveres e responsabilidades, cuja força normativa é equivalente à dos direitos aos quais correspondem.
Dentre os primeiros princípios dos direitos humanos consagrados na História, figuram em lugar de destaque o da proteção da segurança e o da igualdade perante a lei.

2.– O princípio da segurança apresenta três dimensões: segurança pessoal, estabilidade das situações jurídicas subjetivas e seguridade social. Aqui, interessam-nos apenas as duas primeiras manifestações.
A proteção da segurança pessoal como dever do Estado foi afirmada pela primeira vez na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional francesa em 1789 (art. 2º). A partir de então, o princípio vem sendo reproduzido nos principais documentos internacionais de direitos humanos – como a Declaração Universal de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (art. 9º), a Convenção Americana de Direitos Humanos (arts. 4º e 5º) – bem como nas Constituições dos mais diferentes países.
Entre nós, tal princípio foi explicitamente consagrado em todas as Constituições republicanas, inclusive na de 1967/1969 (art. 153 caput), promulgada durante o regime militar.
O respeito à segurança pessoal é assegurado por várias regras declaratórias de direitos fundamentais específicos, como o direito à vida e à integridade pessoal. Sujeito passivo da relação jurídica é, em primeiro lugar, o próprio Estado, ao qual incumbe o dever de criar, na sociedade política, um ambiente de geral proteção para todos os que se encontram em seu território, nacionais e estrangeiros. Tal proteção não se esgota nas medidas de prevenção da criminalidade, mas completa-se, necessariamente, pelo sistema de repressão aos crimes ou abusos cometidos contra a vida e a integridade das pessoas.
Nessa matéria, o dever fundamental do Estado é especialmente relevante, quando as violações são perpetradas pelos seus próprios agentes ou funcionários, incumbindo às autoridades públicas tomar, desde logo, as medidas disciplinares ou penais cabíveis.

3.– A segurança decorrente da estabilidade das situações jurídicas subjetivas é uma característica essencial do Estado de Direito, no qual todo poder há de ser exercido de acordo com normas gerais e impessoais.
Na tradição anglo-saxônica, ele é enunciado pela fórmula do due process of law, que já aparece, em sua essência, na Magna Carta de 1215 (art. 39), e que veio a ser consagrado na 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, promulgada após o término da guerra civil, no século XIX: “Nenhum Estado fará ou executará nenhuma lei, com efeito de reduzir as prerrogativas ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem tampouco Estado algum privará uma pessoa de sua vida, liberdade ou bens, sem o devido processo jurídico (without due process of law)”.
A Constituição Federal em vigor edita várias regras de aplicação do princípio da estabilidade das situações jurídicas subjetivas em geral, a saber:
a) “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5º, VIII);
b) “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI);
c) “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5º, LIII), complementada pela regra de que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (art. 5º, XXXVII);
d) “Não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX), sendo que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5º, XL);
e) “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV).
Especificamente no tocante ao funcionamento da administração pública, a estabilidade das situações jurídicas subjetivas, própria de um Estado de Direito, foi acentuada pela Constituição Federal com a declaração dos princípios da legalidade e da impessoalidade (art. 37, caput).

4.– O princípio da isonomia deu início ao processo de extinção, no final do século XVIII, do regime feudal de divisão da sociedade em grupos estamentais – geralmente o clero, a nobreza e o povo; os dois primeiros dotados de privilégios em relação ao último. De acordo com a tradição, cada estamento era regido por um estatuto próprio, composto de direitos e deveres específicos, tanto na vida privada, quanto na esfera político-administrativa.
A Revolução Americana e a Revolução Francesa firmaram, desde logo, o princípio de que cada sociedade política é regida por um direito uniforme, aplicado igualmente a todos os cidadãos, sem que se admita a existência de grupos sociais privilegiados em relação aos demais.
A Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu de algumas semanas a própria independência dos Estados Unidos em 1776, usou em seu parágrafo primeiro de uma expressão que veio a ser repetida pelos séculos afora: “Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes.”
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada pela Assembléia Nacional francesa em 1789, abre-se com a afirmação de que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, sendo que “as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum” (art. 1º). No art. 6º, a Declaração expressa a regra de que a lei “deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna”; de onde decorre que “todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, cargos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção a não ser a de suas virtudes e seus talentos”.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagrou definitivamente o princípio da isonomia, ao determinar, em seu artigo VII, que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei”.
No Brasil, o princípio aparece em todas as Constituições republicanas, inclusive naquela promulgada sob o regime militar (art. 153, § 1º): “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas”; devendo frisar-se especificamente esta última, em função do que será exposto mais adiante.

5.– É fato notório que, durante o regime político inaugurado com o golpe militar de 1964, agentes públicos das diferentes unidades da federação, notadamente da União Federal, praticaram abusos e atos criminosos contra opositores políticos ao regime, em violação ao princípio da preservação da segurança pessoal. Milhares de indivíduos foram assassinados, com ou sem ocultação do cadáver, ou então submetidos a seqüestro, cárcere privado, abusos sexuais e torturas de toda sorte.
Alguns desses fatos nefandos são relatados no livro Direito à Memória e à Verdade, editado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em 2007.
Naquele mesmo período, outros muitos milhares de cidadãos brasileiros, por razões de militância ou mera convicção política, foram atingidos por atos ditos institucionais ou complementares, sendo punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer ocupações profissionais, em virtude de pressões ostensivas ou expedientes sigilosos.
Criaram-se, com isso, duas classes de brasileiros: uma, de cidadãos normais, que gozavam de direitos e prerrogativas invioláveis pelo Poder Público; outra, de cidadãos de segunda categoria, aos quais não se reconhecia direito algum perante o Estado, nem mesmo o de recorrer ao Judiciário para defesa de seus interesses pessoais.

6.– Encerrado o regime militar, competia às autoridades públicas do novo Estado de Direito, instituído com a Constituição Federal de 1988, exercer o dever fundamental de agir contra os responsáveis por tais desmandos.
Tal, porém, não ocorreu.
No campo penal, interpretou-se falsamente a Lei nº 8.683, de 28 de agosto de 1979, como tendo abrangido pela anistia os agentes públicos, mandantes ou executores, que haviam cometido crimes contra a vida e a integridade pessoal dos cidadãos considerados opositores políticos do regime. E assim sucedeu, porque os delitos praticados pelos agentes do Estado foram considerados, com base na lei, conexos com os imputados aos opositores políticos; quando se sabe, pertinentemente, que a conexão criminal pressupõe unidade de objetivo e de ação delituosa entre os agentes, o que jamais poderia ter ocorrido em tais casos.
Dessa omissão culposa do Estado em agir penalmente contra os agentes públicos que cometeram tais crimes, resultou a ocorrência de prescrição, salvo no que tange ao crime de ocultação de cadáver (Código Penal, art. 211), em razão do seu caráter permanente. Mas até hoje ainda não se tomou a iniciativa de abrir inquérito e propor a competente ação penal contra os responsáveis.
Por outro lado, o Estado brasileiro, invocando a idéia de “conciliação e pacificação nacional”, decidiu reconhecer às vítimas ou seus herdeiros, nas hipóteses referidas no inciso anterior, uma indenização pecuniária. Assim foi estabelecido, tanto no art. 10, § 3º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, com a redação dada pela Lei nº 10.875, de 1º de junho de 2004, quanto na Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002 (art. 1º, inciso II).
O reconhecimento desse direito a indenização, nos casos especificados pelas citadas leis, implicou, inquestionavelmente, o reconhecimento oficial de uma responsabilidade civil do Estado. A esse título, já foram despendidas pela União Federal (e também por alguns Estados federados) elevadas somas pecuniárias. Mas, até hoje, nenhuma ação regressiva foi intentada contra os agentes ou funcionários causadores dos danos assim ressarcidos com dinheiro público.

7.– A Constituição Federal em vigor é explícita: as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviço público, têm responsabilidade objetiva diante dos administrados, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, vierem a causar (art. 37, § 6º). Mas devem intentar contra estes, em caso de dolo ou culpa, a competente ação regressiva.
Lamentavelmente, a doutrina jurídica nacional não tem salientado que a propositura dessa ação de regresso contra o agente público causador do dano é um dever do Estado. Dever a duplo título. Em primeiro lugar, porque, em se tratando de violação a direito fundamental, ao Estado compete agir punitivamente contra o responsável, máxime se este compõe o seu corpo de funcionários. Em segundo lugar, porque, em se tratando de ressarcimento operado com recursos públicos, isto é, recursos pertencentes primariamente ao povo, o prejuízo pecuniário não deve ser sofrido por este, mas há de recair, em última instância, sobre o autor do dano.
Ora, até hoje, ao que se saiba, nenhuma medida judicial foi tomada para fazer cumprir esse mandamento constitucional.

É por essas razões que o signatário toma a liberdade de apresentar a presente representação, confiante em que o Ministério Público Federal saberá tomar as medidas cabíveis, a fim de cumprir a sua função superior de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Fábio Konder Comparato
OAB-SP nº 11.118"

Recomendar

Relatar erro

O objetivo desta funcionalidade e de reportar um defeito de funcionamento a equipe técnica de tecnologia da OAB, para tal preencha o formulário abaixo.

Máximo 1000 caracteres