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Britto defende mais reflexão do que festa em 180 anos de cursos

segunda-feira, 6 de agosto de 2007 às 19h19

Brasília, 06/08/2007 – O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, afirmou hoje (06) que, na data em que a entidade celebra os 180 anos de criação dos primeiros cursos de Direito do Brasil, há menos razões para festejos e muito mais para reflexão, autocrítica e mudanças. “Refiro-me à proliferação, massificação e banalização dos cursos jurídicos no Brasil. Há uma criminosa indústria do ensino, que vende ilusões ao jovem brasileiro, frustrando seu legítimo - diria mesmo sagrado - desejo de ascensão social pelo saber”. A afirmação foi feita por Britto ao abrir a homenagem da OAB aos 180 anos de instituição dos cursos jurídicos das Faculdades do Largo de São Francisco (São Paulo) e de Recife (Pernambuco) – os primeiros a serem criados no Brasil.

Ao discursar na cerimônia realizada no auditório do edifício sede da OAB, Cezar Britto afirmou que a proliferação de cursos de Direito de má qualidade e a mercantilização do ensino jurídico se agravam ano após ano, sem que o Estado tome qualquer atitude firme no intuito de dificultar a abertura de mais cursos jurídicos que vendem, apenas, ilusões. “Em vez de propor o enquadramento das instituições incompetentes - e mesmo o descredenciamento de diversas delas -, muitos, dentro e fora do Estado, sugerem nada menos que o fim do Exame de Ordem”, alertou Britto. “É como sugerir ao paciente que está com febre que quebre o termômetro para se curar”.

A mercantilização do ensino jurídico é antiga, lembrou o presidente da OAB, e reflete, segundo ele, um “gravíssimo descompasso” entre cursos e o mercado de trabalho brasileiro. “Sobretudo gravíssimo descompasso entre o compromisso moral de uma instituição de ensino e a sociedade que a abriga”, denunciou.

Britto criticou, ainda, a “precária” fiscalização que recai sobre os cursos de Direito que visam exclusivamente o lucro e lembrou que a formação de baixa qualidade fornecida aos estudantes tem se refletido não só nos altos percentuais de reprovação no Exame de Ordem, mas também nos resultados de concursos públicos para a magistratura, o Ministério Público, o magistério e demais carreiras judiciárias.

“Sabemos que o ensino jurídico sem qualidade atinge todo o espectro da Justiça, na medida em que compromete a formação de todos os que participam de sua administração - e, em última análise, atinge o próprio conceito de cidadania e de democracia”, afirmou Cezar Britto, fazendo um apelo a todos os ramos do Direito para que busquem e defendam um ensino de maior qualidade. “Esse é um compromisso que deve unir todo o universo dos operadores do Direito, do setor público e privado”.

Britto finalizou o seu discurso lamentando ter abordado os aspectos que mais clamam pela atenção dos operadores do Direito, em vez de apenas ter exaltado os 180 anos de instalação dos cursos jurídicos no Brasil, data que deveria ser exclusivamente de festa. “Mas ainda não é. Cabe-nos trabalhar para que venha a ser”.

A seguir, a íntegra do discurso proferido pelo presidente nacional da OAB, Cezar Britto:

"Senhoras e senhores

O advento dos cursos jurídicos no Brasil, há 180 anos, foi uma das primeiras e mais eloqüentes manifestações de soberania nacional produzidas entre nós após o Grito da Independência.

É por isso, ainda hoje, uma das datas mais expressivas e significativas de nossa nacionalidade, que deveria ser cultuada não apenas pelo mundo jurídico, mas pelo país como um todo.

A consolidação de qualquer ato emancipacionista associa-se inapelavelmente ao saber. É pela aquisição de conhecimentos que indivíduos e nações ascendem moral, econômica e socialmente - e se libertam.

Não por acaso, no período colonial, a matriz portuguesa vetava a instalação de universidades no Brasil. Não permitia sequer a impressão ou a circulação de livros e periódicos.

O desejo imperial de manter a colônia eternamente subjugada impunha uma logística cruel, de torná-la impermeável ao saber.

Essa mesma logística manteve-se nas demais colônias portuguesas da África, emancipadas após a Revolução dos Cravos, nos anos 70 do século passado. Somente então, começaram a surgir naquelas ex-colônias cursos superiores.

Saber e soberania formam equação indissociável.
Ao tempo da Colônia, os filhos das elites brasileiras iam estudar em Coimbra. De lá, voltavam impregnados da ideologia dominante. Passavam a pensar como o colonizador e a vocalizar internamente seus interesses, o que adiava e complicava - embora não impedisse - a formação de uma consciência nativista mais efetiva.

Os movimentos nativistas, como a Inconfidência Mineira, nutriam-se do saber subversivo aos interesses da Metrópole, como a literatura libertária que desaguou no movimento revolucionário francês do final do século XVIII.

A Independência do Brasil acabou paradoxalmente se impondo por meio da própria família real portuguesa, que para cá se transferiu provisoriamente em 1808, em face das invasões napoleônicas.

A colônia adquiriu o status de Reino Unido, tendo o Rio de Janeiro por capital.

A população passou a desfrutar de serviços públicos de melhor qualidade, mas o elemento decisivo - o grande diferencial que tornaria a independência inevitável - foi exatamente o acesso dos colonizados ao conhecimento.

A colônia passou a dispor de jornais e editoras. Para cá veio a Biblioteca Real Portuguesa, hoje Biblioteca Nacional. Criou-se o Jardim Botânico, abriram-se os portos às nações amigas.

Não havia mais como retornar ao status anterior, de colônia subjugada à ignorância e ao isolamento.

O 7 de Setembro foi, assim, conseqüência natural da superação de um grau espesso de obscurantismo. Mas era preciso avançar mais.

Para que a ex-colônia se transformasse efetivamente em nação, não bastava proclamar-se como tal. Era preciso dotar-se de cursos superiores - e a cultura jurídica, naquela época, estava associada ao saber mais enciclopédico, abrangendo, além da Ciência do Direito, a filosofia e a ciência política. Era a ciência dos governantes.

Por essa razão, já na malfadada Assembléia Constituinte de 1823, dissolvida pelo imperador, tratou-se da necessidade de criação de cursos jurídicos no Brasil. E o legislador de então teve a sabedoria de concebê-los dentro de uma visão logística e integracionista.

Situou-os nos dois pólos extremos de desenvolvimento do país na época: no Sudeste, em São Paulo, e no Nordeste, em Olinda.

Isso em 10 de agosto de 1827 - data que, para nós, operadores do Direito, é uma das três mais importantes de nosso calendário cívico.

As duas outras são a data de criação do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), em 1843, e a da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1930.

O que salta aos olhos, a quem se aprofunde no estudo da história do Brasil - sobretudo na história de suas instituições, na monarquia e na república - é a presença seminal e modelar da cultura jurídica.

Não há qualquer exagero em afirmar que a construção da consciência libertária em nosso país deve à cultura jurídica - e, portanto, às instituições que a disseminam - os seus mais altos e expressivos momentos; suas mais altas e admiráveis figuras.

Eram bacharéis os mais respeitáveis e competentes estadistas do Primeiro e Segundo Reinados. São também bacharéis os fundadores e dirigentes da Maçonaria no Brasil, instituição que, em seus primórdios, teve papel decisivo no processo da Independência.

Eram bacharéis em Direito os grandes jornalistas, parlamentares e escritores, os assim chamados formadores de opinião.

Campanhas memoráveis, como a da Abolição e da República, tiveram em advogados legendários, como Joaquim Nabuco, Luís Gama e Ruy Barbosa (Nabuco e Gama, abolicionistas; Ruy republicano), seus pilares.

Instituições culturais como a Academia Brasileira de Letras tem entre seus fundadores e maiores expressões maioria absoluta de bacharéis.

A edificação das instituições republicanas contou igualmente com a presença decisiva da cultura jurídica, ao ponto de ser intitulada pelos historiadores de "República dos bacharéis".

Nomes eminentes povoaram essa fase de consolidação do Estado brasileiro. Além de diversos presidentes da República - inclusive o primeiro presidente civil, Prudente de Morais -, tivemos a vida pública nacional marcada pela presença destacada de advogados e juristas de grande erudição.
Cito, entre muitos outros, nomes como Tobias Barreto (por cujo nome é conhecida a faculdade pioneira de Olinda), Clóvis Bevilacqua (principal mentor do Código Civil), Pontes de Miranda, Sobral Pinto, Evaristo de Morais, Nélson Hungria, Vicente Rao, Evandro Lins e Silva - e tantos outros, que forjaram sua formação nos cursos jurídicos brasileiros.

Em passado recente, um presidente da OAB - o saudoso Raymundo Faoro - pontificou como um dos arquitetos da redemocratização, representando a sociedade civil na negociação do desmonte da ordem jurídica da ditadura militar de 1964.

Faoro, admirável pensador, autor do definitivo "os Donos do Poder", simboliza a figura do jurista-pensador, que, a partir dos fundamentos do Direito, buscava entender e explicar os fenômenos culturais, sociais e políticos de nosso país.

Cultura jurídica sempre equivaleu, entre nós, ao supra sumo do saber e do compromisso público. Não por outra razão, o Estatuto da Advocacia e da OAB, em seu artigo 44, inciso I, nos compromete com a defesa do Estado democrático de Direito e nos obriga a pugnar pela boa aplicação da lei e a zelar pela cultura e instituições jurídicas.

Não importa se conservadores ou progressistas, os bacharéis em Direito sempre se destacaram pela solidez de sua cultura, pela consistência de suas intervenções, pelo compromisso público - e essa presença avalizava a eficácia dos cursos de Direito em nosso país.

Como coroamento desse compromisso histórico com a sociedade brasileira, o constituinte de 1988 inscreveu na Carta Magna, artigo 133, que "o advogado é indispensável à administração da Justiça".
Trata-se de reconhecimento - mas também (e sobretudo) de compromisso, que exige de nós atenção redobrada com o dispositivo estatutário que nos obriga a zelar pela cultura jurídica do país.

Por isso mesmo, a data de hoje reveste-se de eloqüência especial. E induz a uma grave e atualíssima reflexão, que tem sido objeto de preocupação e denúncia constantes da OAB.

Refiro-me à proliferação, massificação e banalização dos cursos jurídicos no Brasil.

Há uma criminosa indústria do ensino, que vende ilusões ao jovem brasileiro, frustrando seu legítimo - diria mesmo sagrado - desejo de ascensão social pelo saber.

A duras penas, o estudante pobre, cuja escolarização básica precária o impede de ingressar nas universidades públicas - e esse é outro triste paradoxo do sistema educacional brasileiro -, busca a universidade particular. Nem todas, porém, lhe oferecem o que procura. Muitas, sobretudo no campo jurídico, vendem apenas ilusões.

Atraído pela fascinante carreira do Direito, o estudante cede ao aceno de instituições de fachada, que lhe seduzem com ingresso e aprovação fáceis, mediante mensalidades em regra caras.

O jovem enfrenta o desafio de pagá-las e, ao final, quando se prepara para enfrentar o mercado de trabalho, depara-se com o logro: não está tecnicamente qualificado. Não consegue passar no Exame de Ordem, nem nos concursos públicos.
Pregaram-lhe o conto do vigário. Pagou por uma mercadoria - o saber - que não lhe foi entregue.

Quando se analisam superficialmente os números das reprovações no Exame de Ordem - percentuais em geral altos -, tem-se a impressão de que haveria excesso de rigor.

Mas quando esses números são decantados, constata-se que a quase totalidade dos reprovados são egressos daquelas instituições de fachada, descomprometidas com a qualidade do ensino.

Ali, as reprovações chegam a percentuais espantosos de 90%!

Mas, quando se examinam os números das boas faculdades, aquelas efetivamente comprometidas com o saber jurídico e a ética do ensino, os números se invertem: as aprovações ficam entre 80%, 90% - e até mais.

Na média, porém, o índice de reprovação no Exame de Ordem é alto - e o que o torna alto, assustadoramente alto, são os maus empresários do ensino.

A fiscalização do Estado - e o problema é antigo, não pode ser debitado somente a este governo - tem sido precária. Há mais cursos que a capacidade estatal de fiscalizá-los.

A OAB denuncia, publica periodicamente sua relação de faculdades confiáveis, pede parcimônia e rigor ao Poder Público na concessão de autorização para a instalação de novos cursos superiores, mas não se sente ainda suficientemente atendida - nem compreendida.
A reação que a anomalia das reprovações em massa provoca chega a ser, em alguns casos, até cômica. Em vez de propor o enquadramento das instituições incompetentes - e mesmo o descredenciamento de diversas delas -, muitos, dentro e fora do Estado, sugerem nada menos que o fim do Exame de Ordem.

É como sugerir ao paciente que está com febre que quebre o termômetro para se curar.

Ora, o Exame de Ordem, assim como os concursos públicos para a magistratura, o Ministério Público, o magistério e outras carreiras judiciárias, é apenas o termômetro dessa febre do ensino jurídico.

Reflete um descompasso - gravíssimo descompasso - entre cursos jurídicos e mercado de trabalho. Sobretudo gravíssimo descompasso entre o compromisso moral de uma instituição de ensino e a sociedade que a abriga.

A data de hoje, que celebra os 180 anos de instalação dos cursos jurídicos no Brasil, deveria ser exclusivamente de festa. Mas ainda não é. Cabe-nos trabalhar para que venha a ser.

Levantamento da OAB, atualizado até a data de 30 de maio deste ano, constata que a oferta de cursos jurídicos no país continua assombrosa, bem acima da capacidade de absorção do mercado - e bem acima da capacidade do Estado de exercer algum controle de qualidade.

Este ano, no espaço inferior a um mês - entre junho e julho -, o Governo Federal autorizou o funcionamento de nada menos que 20 instituições e reconheceu quatro outras.
Entre 1996 e 2004, o aumento foi de - pasmem! - 2.533%! Se a OAB fosse uma instituição de índole exclusivamente corporativa, não teria por que se insurgir contra esse quadro.

Seria beneficiária dele. Sem Exame de Ordem, teríamos hoje no Brasil algo em torno de 4 milhões de advogados - o que é mais que a soma de todos os advogados do planeta.

O Brasil, com 600 mil advogados, já é o segundo colégio do Ocidente - perde apenas para os Estados Unidos.

Seria ótimo, se houvesse mercado para todos, se isso se refletisse na qualidade do serviço prestado. Não é, porém, assim.

Repito: se fôssemos corporativos, aboliríamos o Exame de Ordem e transformaríamos a OAB na mais poderosa e multimilionária entidade de classe deste país - e uma das maiores do planeta.

Mas estaríamos condenando a prestação jurisdicional brasileira à morte.

Repito mais uma vez: não somos corporativos. Temos compromisso com a sociedade. Temos compromisso com nossa memória histórica - a memória dos bacharéis que ajudaram a forjar esta nação.

Sabemos que o ensino jurídico sem qualidade atinge todo o espectro da Justiça, na medida em que compromete a formação de todos os que participam de sua administração - e, em última análise, atinge o próprio conceito de cidadania e de democracia.
E é isso o que está em jogo na massificação e banalização criminosa do ensino jurídico no Brasil.

Por essa razão, torno a dizer que, na data de hoje, que celebra um dos momentos mais significativos de nossa nacionalidade, há menos razões para festejos e mais para reflexão, autocrítica - e mudanças.

Esse é um compromisso que deve unir todo o universo dos operadores do Direito, do setor público e privado - e a tanto conclamo a todos os aqui presentes. Que esta data nos comprometa com a transformação da Justiça num bem cada vez mais concreto e acessível à cidadania brasileira.

Muito obrigado."

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