Approbato defende integração no Fórum Social

sexta-feira, 24 de janeiro de 2003 às 09:07

Porto Alegre, 24/01/2003 - Ao proferir discurso de abertura das Oficinas Jurídicas promovidas pela OAB-RS, quinta-feira, 23, como parte do Fórum Social Mundial que se realiza em Porto Alegre (RS), o presidente nacional da OAB, Rubens Approbato Machado, defendeu uma nova revolução, pacífica, para a América Latina, que promova a integração sonhada para o continente. Ao citar Dom Hélder Câmara, para quem o sonho se torna realidade quando sonhado junto, Approbato disse que após superar séculos de colonialismo,derrubar ditaduras e produzir Constituições democráticas a região ainda não conseguiu superar as graves seqüelas que, ainda hoje, constituem uma séria ameaça a um sistema democrático que acolhe mais de 400 milhões de habitantes: a pobreza, a violência, o medo. Tudo isso, segundo o presidente, requer um reexame das políticas com os organismos internacionais para que as nações latino-americanas possam promover justiça social.

Leia, na íntegra, o pronunciamento do presidente nacional da OAB, Rubens Approbato Machado, em Porto Alegre:

"É com muita honra que aceitei o convite para pronunciar algumas palavras na Solenidade de Abertura das Oficinas Jurídicas Integradas, que se insere no Fórum Social Mundial, que se realiza, pela terceira vez, em Porto Alegre. É uma honra, repito, por participar de um evento de tanta magnitude como este e, ainda, pela possibilidade de dialogar com companheiras e companheiros, advogadas e advogados, que aqui se fazem presentes. Agradeço, sensibilizado, ao convite feito por nosso companheiro, o conselheiro federal da OAB-RS, Reginaldo Felker.

Confesso que o tema que me foi proporcionado foge ao cotidiano das preocupações do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Discorrer sobre “Integração Político-Cultural e Social dos Países Latino-Americanos” requer mais que boa vontade deste advogado acostumado à planície temática do dia a dia da advocacia. Até por isso mesmo, encaro-o como um desses motivadores desafios que temos de enfrentar em nossa lide. E, ao tentar fazê-lo, convido-os, desde já, a me desculpar por algum ou outro viés de análise e interpretação, na crença de que, entre nós, seguramente estão doutos conhecedores da problemática latino-americana.

Ao começar a dar vazão a este meu pequeno pensamento, desejo homenagear um grande brasileiro, que tanta falta faz a este Fórum e que produziu esta belíssima lição: “Quando sonhamos sozinhos é só um sonho. Quando sonhamos juntos é o começo de uma nova realidade”. Começo dizendo que, na América Latina, precisamos cultivar o sonho de D. Helder Câmara, o sonho de construir um mundo plasmado pela Paz. A cultura da paz se cria e se desenvolve quando cultivamos os valores da cooperação, do respeito, do zelo, da generosidade, da convivialidade, da compaixão, da fé e da esperança. Dom Helder Câmara, Ghandi, Martin Luther King são exemplos de perfis que tipificam a dimensão da generosidade e da paz.

Registro a lembrança para reavivar em nossas mentes a cultura do medo, da insegurança e da destruição, que se projeta em todas as partes do mundo, particularmente nos espaços nacionais plenamente dependentes do paroxismo e da magnificação da violência, dentre eles os das nações latino-americanas. A nossa história – a história das nações latino-americanas – tem capítulos muito parecidos. Colonizados pelas antigas metrópoles, herdamos uma cultura autoritária e cheia de ordenações nos campos da produção, do comércio, da política, da cultura, da religião.

No acender das luzes dos nossos países, mesmo antes de caudilhos e ditadores determinarem os seus governos arbitrários, o conceito era: “Deus está no céu, o Rei está longe, quem manda aqui sou eu”. Era isso que proclamava o colonizador Lope de Aguirre, o legendário espanhol que procurava o Eldorado e que deixou marcas fortes por muitos espaços das América Central e do Sul.

Abrimos as veias da América Latina, mandamos embora os colonizadores, derrubamos as ditaduras, produzimos Constituições democráticas, elegemos os nossos representantes, iniciamos novas histórias de democracia, principalmente a partir da segunda metade do século XX, apesar de ciclos intermitentes sob regimes autoritários, mas não conseguimos superar graves seqüelas que, ainda hoje, constituem uma séria ameaça a um sistema democrático que acolhe mais de 400 milhões de habitantes:

as disparidades entre classes sociais são aviltantes no conjunto dos países latino-americanos;

a miséria assola imensos contingentes dos nossos países;

o tráfico de armamentos e drogas é fator desestabilizador de governos e instituições;

mazelas históricas – cultura do patrimonialismo, mandonismo, grupismo, caciquismo, fisiologismo – persistem, corroendo instituições políticas e sociais e desmoralizando poderes públicos e partidos políticos;

o sistema representativo não tem cumprido satisfatoriamente sua missão constitucional de interpretar e atender às legítimas demandas das sociedades;

a democracia representativa cede pouco espaço para movimentos sociais, reduzindo a participação do povo no processo decisório;

os partidos não têm conseguido formar governos sólidos, e o resultado é uma permanente tensão entre os poderes Executivo e Legislativo;

a justiça é lerda e só chega aos mais pobres em conta-gotas;

as instituições padecem de vícios históricos, que as fazem refratárias às mudanças;

o sistema de governo – o presidencialismo – é concentrador de muito poder, o que o torna senhor absoluto da coisa pública.

Senhoras e senhores, advogadas e advogados:

O primeiro grande desafio a ser superado, na América Latina, é o da pobreza. Cerca de 221 milhões de pessoas – mais de 43% do total da população latino-americana – vivem na pobreza. Entre 1997 e 2001, a pobreza diminuiu apenas em cinco países: México, República Dominicana, El Salvador, Panamá e Chile. Inalterada está a situação na Bolívia, Costa Rica, Honduras e Venezuela. No Brasil, a diminuição é mínima, de 37,5% para 36,0. Aumentou no Uruguai, Colômbia, Argentina e Paraguai. A Argentina tem a maior taxa: de 19,7% em 1999, a pobreza aumentou para mais de 30% em 2.001. Pior é o que ocorre no universo das crianças: 50% da população de crianças está na linha de pobreza, não tendo satisfeitas suas necessidades básicas, como acesso à saúde e à educação.

Em termos sintéticos, pode-se dizer que, na América Latina, quem não está perto do abismo, está olhando para o despenhadeiro, o que é fruto de expressiva queda no fluxo de recursos para a região, a partir da retração da liquidez internacional e da crise que assola o nosso vizinho, a Argentina. Até o Chile e o México, com suas taxas de risco menores, estão tendo crescimento pequeno.

A previsão de um crescimento de 2% no PIB da região, em 2002, já é considerada um triunfo.

O pior é constatar que um espirro do grande irmão do norte – os Estados Unidos – causa-nos a maior das gripes. E como esses espirros têm ocorrido de maneira freqüente, nas últimas décadas, é fácil concluir que a América Latina tem se permanecido em estado gripal permanente. É claro que estamos tratando da influência norte-americana sobre o espírito da nossa América, influência que se observa na construção e desenvolvimento de eixos sociais e culturais.

Quero ressaltar, antes de continuar esta breve análise, que não tenho visão xenófoba e não faço discriminação a países e culturas. Respeito as Nações, particularmente aquelas que se deitam no leito da democracia e sabem cultivar a árvore dos direitos humanos e da cidadania. A partir desta observação, quero reafirmar que, da mesma forma como prezo os ditames democráticos, tenho sérias restrições a fazer a respeito dos desvios inerentes ao próprio sistema democrático, particularmente no que se refere à chamada indústria cultural.

E o que é a indústria cultural? Alguém já disse: é algo como uma fábrica de geladeiras, só que, ao invés de fabricar geladeiras, fabrica cantores, bandas, atores, atrizes, esportistas, vendendo produtos que estão associados a eles, como CDs da banda, roupas com o nome da banda, óculos, cintos, meias, cuecas, calça, bronzeador, livros, revistas, cadernos escolares, perfumes e outra infinidade de produtos.

Todos bem sabem que a indústria de comunicação de massa norte-americana é a mais forte do mundo. De lá, florescem veios e fluxos culturais que se espalham por todos os continentes, marcando forte presença nos traços culturais das nações, particularmente nos campos específicos da cultura da violência, tão bem retratada pela cinematografia norte-americana, da cultura do modismo e do consumismo exacerbado. Ou seja, a indústria cultural vende algo mascarado como cultura e arte.

Deparamo-nos, como dizia, com um mundo que se angliciza, bastando ver, por todos os lados, em todos os recantos universais, as palavras em inglês. Os filmes de Hollywood vão tornando o mundo cada vez unificado. Os Estados Unidos, pasmem, faturam US$ 40 bilhões anualmente com a exportação de imagens, sendo parcela considerável de nossa dívida externa. O Parque dos Dinossauros, de Spielberg, rendeu, sozinho, cerca de US$ 1 bilhão, enquanto um filme brasileiro, “A Grande Arte” não alcançou módicos US$ 6 milhões.

Diante dessa globalização cultural, urge perguntar: e como fica a integração cultural das nossas Nações? Ressalto que não sou contra a globalização, que pode vir a se transformar em veículo de disseminação de benefícios, a partir do momento em que não se circunscreve apenas à questão dos mercados. Globalização não pode ser apenas questão comercial e financeira. É preciso globalizar a democracia, a defesa dos direitos humanos, a defesa da lei e da ordem como premissa a essa grande comunhão humana de fraternidade e prosperidade.

Para que cheguemos a esse tão almejado objetivo, urge implantar políticas que evitem a continuidade do processo de concentração de renda, de exclusão social – no sentido de exclusão de direitos, a começar pelo direito ao emprego formal – das violências urbana e rural, do enfraquecimento dos sistemas democráticos, conquistados a duras penas em nosso continente.

Impõe-se, antes de tudo, dar um basta na hegemonia do capital financeiro, que só tem olhar para as políticas de estabilidade monetária, sendo estas fortemente responsáveis pela corrosão das bases sociais da democracia.

Estamos carecendo, sim, de mais democracia, do pão sobre a mesa dos pobres.

A América Latina carece, sim, de uma revolução pacífica nos campos da democracia social, política, ética e moral. E isso requer reexame das políticas com os organismos internacionais, a partir do FMI e Banco Mundial, a partir da preocupação básica em reafirmar a soberania dos Estados latino-americanos.

Ou avançamos rumo à consolidação da nossa soberania e no fortalecimento da coesão do continente, respeitando-se as bases políticas, sociais e culturais dos nossos Estados, preservando a identidade própria e escolhendo os caminhos mais viáveis ao nosso progresso, ou cairemos no despenhadeiro da desagregação social.

A América Latina requer políticas próprias voltadas para o atendimento de sua multiculturalidade, plurietnicidade e multilingüismo dos países do continente. Impõe-se, ainda, um conjunto de programas destinados a revalorizar as políticas públicas, promovendo parcerias privadas e coletivas. As ações dos Governos devem buscar o sentido preservacionista das identidades nacionais, assegurando a criação, o consumo e a preservação dos valores culturais, garantindo-se recursos nos orçamentos necessários para seus processos de desenvolvimento.

Entendemos que a cultura, como geradora de sentidos e significados, base das identidades nacionais, não deve estar vinculada exclusivamente às dinâmicas dos mercados globais, mas às características próprias de cada Nação.

Precisamos, a todo custo, promover a difusão da latinidade, a fim de que possamos desenvolver uma teoria consistente dos valores da cultura latina. Certos passos já estão sendo dados no sentido de maior integração cultural, como a decisão do ensino obrigatório do idioma espanhol no Brasil e o ensino de português nos países de fala espanhola.

Precisamos ir além.

Lembro a necessidade de uma definitiva História da América Latina, que poderia ser produzida por uma equipe renomada de historiadores de todos os países latino-americanos. Cursos de mestrado e doutorado, especializados nas temáticas latino-americanas, podem abrir grandes perspectivas no campo acadêmico e na fixação dos elos comuns aos nossos países. Nessa mesma linha, cito a realização de festivais de música, feiras de artes, teatro.

No campo social, podemos trabalhar conjuntamente em projetos inter-regionais de saúde, educação, alimentação, habitação popular, procurando estudar e buscar aspectos que facilitem a adoção e a viabilização de políticas públicas emergenciais e de caráter permanente. Não podemos nos esquecer dos movimentos conjuntos em torno de programas de preservação ambiental, especialmente nas áreas da Amazônia e do Pantanal.

As organizações não-governamentais dos países latino-americanos, reunidas num amplo foro de discussão permanente, poderão se transformar em um gigantesco e poderoso escudo de proteção aos interesses das nossas populações.

Estas modestas sugestões poderão vir a compor o vasto repertório de ações, medidas, programas e projetos que tenham por meta a integração social, política e cultural da América Latina.

Senhoras e Senhores:

Ao término de minha locução, não posso deixar de mencionar, mais uma vez, o conceito-síntese da Ordem dos Advogados do Brasil: direitos humanos. Estes direitos constituem a base sobre a qual se assenta a verdadeira integração dos países latino-americanos. O nosso alerta é no sentido de juntar todas as energias das forças organizadas de nossas sociedades para que, mobilizadas de maneira permanente, lutem pelo respeito à ética nas atividades dos poderes do Estado.

A integração da América Latina deve ser permanente chama a iluminar as nossas consciências. O nosso sonho, que depende só de nós, é a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações prósperas. As democracias do nosso continente hão de acentuar o seu caráter social, corrigindo as desigualdades e as injustiças sociais. Participação dos cidadãos nos processos decisórios e no encaminhamento de problemas coletivos, respeito ao pluralismo, fortalecimento das instituições políticas e sociais, prioridade ao combate à miséria, eis as linhas mestras do horizonte com o qual sonhamos.

Coragem para ir em frente; determinação para perseguir os objetivos; jamais abandonar a confiança, a esperança e a fé. Como nos ensinou Confúcio, “até que o sol brilhe, acendamos velas na escuridão”.

Muito Obrigado."

Rubens Approbato Machado
Presidente Nacional da OAB