Entrevista: Decifrando a esfinge

sábado, 28 de outubro de 2006 às 06:02

Brasília, 28/10/2006 - Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Fábio Konder Comparato tem a reputação de ser um dos mais lúcidos intelectuais do país, mantendo a sua capacidade de se indignar com os desvios éticos que ocorrem. Foi, por exemplo, um dos advogados de acusação no processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor e autor da ação de privatização da Companhia Vale do Rio Doce, movida por um grupo de advogados de São Paulo.

Especialista em Direito Comercial, cujo estudo o levou a publicar “O Poder de Controle na Sociedade Anônima”, também se dedica a cursos em outras áreas jurídicas, como Fundamentos de Direitos Humanos e Direito do Desenvolvimento. Entre outros livros, publicou “Para Viver a Democracia” e um projeto de Constituição para o Brasil, intitulado “Muda Brasil”.

Nesta entrevista, concedida a revista Brasília em Dia, logo ele, que assistiu por dentro o surgimento do PT, analisa o que está acontecendo com o Partido dos Trabalhadores, e a experiência de um primeiro governo de esquerda no Brasil.

Além de ensaiar o cenário que o país irá ter, a partir de janeiro de 2007.

Marcone Formiga - O cenário em formação para a eleição presidencial é o seguinte: se Lula vencer, a oposição vai tratar de inviabilizar seu segundo governo, com ações na Justiça; caso Alckmin vença, o PT vai usar os movimentos populares para desestabilizá-lo. Qual a conseqüência de um ou de outro cenário para o país?

Fábio Konder Comparato - Com a vitória de Lula - a outra possibilidade parece já ter sido afastada -, permanecerá o mesmo jogo político de sempre: governo e oposição vão continuar a se engalfinhar no teatro político, sob as vistas do povo indiferente, e o país seguirá sem rumo. O problema político maior não é da pessoa dos governantes, mas, sim, da arquitetura do Estado brasileiro, onde não encontramos nenhum órgão capaz de desempenhar as funções de previsão e planejamento, e de elaborar as políticas públicas conseqüentes. O Brasil navega ao léu, no mar encapelado da globalização capitalista. Como diz o ditado popular, “marinheiro sem rumo nem vento ajuda”. Se preferir outra imagem, o Estado brasileiro é como um piloto que dirige o avião sem plano de vôo...

Marcone Formiga - Qual será o papel dos movimentos sociais, daqui por diante?

Fábio Konder Comparato - Provavelmente, eles continuarão, com uma única exceção, a depender dos governos em todos os níveis. A exceção nessa manada de carneiros é o MST, a grande novidade no panorama político brasileiro do último quarto de século. O MST sabe que não poderá jamais depender da boa vontade dos governantes, e que deve elaborar o seu próprio plano estratégico e tomar constantemente a iniciativa.

Marcone Formiga - A corrupção está ficando banalizada, a cada caso, sem que os responsáveis sejam punidos exemplarmente. Ou seja, no Brasil, o crime compensa?

Fábio Konder Comparato - Não creio que a corrupção do governo Lula tenha sido maior do que a do governo FHC. A grande diferença é que FHC paralisou a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, ao passo que Lula não quis ou não soube fazer o mesmo. Até setembro último, a Polícia Federal já havia lançado, durante o governo Lula, 183 operações de investigação criminal. Em oito anos de governo FHC, a Polícia Federal organizou não mais do que 20 operações dessa natureza. O atual Procurador-Geral da República ofereceu denúncia contra 40 agentes políticos, ligados, direta ou indiretamente, ao governo Lula.

Marcone Formiga - E durante o governo FHC?

Fábio Konder Comparato - Durante os dois mandatos de FHC, o chefe do Ministério Público Federal não manifestou o mesmo empenho no exercício de seus poderes-deveres em relação aos homens da presidência. Houve até um jornalista que, maldosamente, deu-lhe a alcunha de Engavetador-Geral da República. Deve-se notar que durante o governo FHC, o então Ministro Sérgio Mota fui acusado de subornar parlamentares para conseguir, por meio de emenda à Constituição, introduzir a reeleição de chefes do Executivo, visando beneficiar o presidente que estava, então, no cargo. Ou seja, o chefe de Estado promoveu a alteração da Constituição em causa própria, o que já é inadmissível em um Estado de Direito, e ainda por cima teria, segundo a denúncia largamente difundida nos meios de comunicação de massa, utilizado meios pouco ortodoxos para conseguir o seu objetivo. Tudo isso, sem falar na privatização da maior parte das empresas públicas deste país, operação que rendeu ao Estado brasileiro R$ 100 bilhões e a certos intermediários bem posicionados alguns trocados a mais...

Marcone Formiga - Estaria a política brasileira mais para a ilicitude?

Fábio Konder Comparato - Infelizmente, somos incompetentes até mesmo para montar operações desonestas...

Marcone Formiga - O presidente Lula é um fenômeno político, eleitoral ou de carisma?

Fábio Konder Comparato - Convém lembrar que criamos, neste país, um fosso abissal entre a mal chamada elite e o restante dos mortais. Na visão destes últimos, a sociedade brasileira está, definitivamente, dividida entre "nós e eles". Para os de baixo, Lula é "nosso", e por isso é atacado por "eles". Por outro lado, as relações de coronelismo marcaram fundamente a mentalidade popular. O que os subordinados esperam do coronel é que ele os proteja contra as adversidades. Quando isso ocorre, o subordinado é fiel ao seu chefe até a morte. O povo hesitou muito em apoiar Lula, porque, justamente, ao contrário de Getúlio, ele vinha do meio popular e não podia ser coronel. Agora, porém, com o bolsa-família, o povo percebeu que um dos "nossos" pode proteger melhor que qualquer representante "deles".

Marcone Formiga - Por denúncias menos graves que recaem sobre o presidente Lula, Fernando Collor sofreu o impeachment. Por que, afinal de contas, nada acontece ao presidente Lula?

Fábio Konder Comparato - O processo de impeachment depende de manobras parlamentares e de uma definição do povo, em última instância. Collor não tinha apoio parlamentar e acabou jogando o povo contra si. Não é o que ocorre com Lula. É verdade que há também a ação dos meios de comunicação de massa. No caso de Collor, com exceção da Rede Globo, eles foram implacáveis. Lula, aí, sai sem dúvida, perdendo em comparação com FHC, com o qual a imprensa, o rádio e a televisão foram absolutamente condescendentes. Foi justamente para superar as deficiências e os impasses do processo de impeachment, que a Ordem dos Advogados do Brasil ofereceu ao Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição, instituindo o sistema de recall eleitoral; ou seja, o povo que elege pode, também, destituir pelo voto os que foram eleitos.

Marcone Formiga - O senhor acha que o presidente Lula foi preparado para conquistar o poder?

Fábio Konder Comparato - Lula não foi preparado nem para conquistar o poder nem para exercê-lo. Quem montou a operação de conquista do poder foi o grupo de José Dirceu, já desde o começo dos anos 90. Lula foi utilizado como um ícone ou um totem. Bastava içá-lo, para que todos os que acalentavam a esperança de uma regeneração da vida política se entusiasmassem diante do ídolo. Bem examinadas as coisas depois que aconteceram, nunca, ninguém, fora do círculo íntimo de Lula, soube bem o que ele pensava do Brasil e do mundo...

Marcone Formiga - Ele concordou em conquistar o poder, mesmo sabendo que nada poderia fazer pelo povo?

Fábio Konder Comparato - Ele participou, como estandarte, de uma empreitada política que obedeceu ao velho lema de boa parte da esquerda: os fins justificam os meios. Como sempre acontece em tais casos, os meios não são asseados e os fins se limitam à conquista do poder, sem nenhum horizonte ulterior.

Marcone Formiga - Logo no começo do atual governo o senhor afirmou que todo o poder tende a se concentrar e se concentra sobre si mesmo, ou seja, é uma espécie de doença psicológica. Os homens do poder têm a tentação de só se enxergarem, deixando de aceitar a realidade fora do poder. Foi isso, em resumo, que aconteceu com o PT?

Fábio Konder Comparato - Os primeiros cristãos - com exceção de São Paulo - estavam convencidos de que o poder era um instrumento do demônio, e que, por conseguinte, a sua capacidade de sedução era ilimitada. Como disse o Duque a Sancho Pança, quando lhe ofereceu o governo da fantástica ilha de Barataria, não há nada mais doce neste mundo do que mandar e ser obedecido. O fato trágico é que, com grande freqüência, quem deseja ardorosamente o poder acaba sendo por ele escravizado. A lenda de Fausto, imortalizada por Goethe, é uma boa ilustração dessa verdade. No caso Lula não aconteceu outra coisa. Daí por que é preciso enfatizar a necessidade de se estabelecerem controles objetivos ao exercício do poder, em todos os campos: político, econômico ou religioso. Quem assume e exerce um poder sem controles enlouquece e arrasta os que dele dependem à ruína geral.

Marcone Formiga - O PT pareceria ter o monopólio da ética, iria acabar com a corrupção. Nada disso aconteceu. Como fica, agora? Qual a consequência disso para a esquerda brasileira?

Fábio Konder Comparato - É hora de se encetar um largo movimento de regeneração da vida política nacional, segundo os princípios da república e da democracia autênticas. República é o regime em que o bem comum do povo está sempre acima dos interesses particulares de indivíduos ou grupos. Democracia é o regime em que o povo exerce efetivamente a soberania e não a delega para supostos representantes. Ora, nunca tivemos nesta terra nem república nem democracia. Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, afirmou categoricamente, já na primeira metade do século XVII: "Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem particular". Tampouco tivemos uma verdadeira democracia, mas apenas uma oligarquia mal disfarçada. A soberania popular consiste em reconhecer ao povo o poder de controle sobre todos os órgãos do Estado. Esse poder de controle comporta a fixação das grandes diretrizes da política nacional e a tomada de decisão relativa aos bens públicos e a fiscalização e responsabilização de todos os agentes públicos, eleitos ou não pelo povo. É por isso que o primeiro ato da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, lançada pela Ordem dos Advogados do Brasil, em 15 de novembro de 2004, consistiu no oferecimento, ao Congresso Nacional de um projeto de lei sobre plebiscito, referendo e iniciativa popular legislativa.

Marcone Formiga - Enquanto isso, o PIB piora e continua a má distribuição de renda, o país despenca no ranking entre os que mais crescem. Qual será a conseqüência disso?

Fábio Konder Comparato - Há 25 anos que o país não cresce economicamente, o que constitui um fato inédito em nossa História. Nesse mesmo período de tempo, a participação dos rendimentos do trabalho na renda nacional caiu de 50% a pouco mais de um terço. Nos últimos 12 anos, o desemprego aumentou em 80%. Ou seja, voando sem radar e sem transponder, o Estado brasileiro vai certamente colidir com algum sério obstáculo em pouco tempo. É mais do que hora de se reformar a arquitetura estatal, como eu disse acima. É preciso criar, como foi feito no Japão e na França no imediato pós-guerra, ou na Coréia do Sul nos anos 60, um poder de planejamento. Esse poder, em minha visão, deve ser autônomo em relação ao Executivo e contar com a participação decisiva dos grandes agentes da economia nacional.

Marcone Formiga - Quase não há investimento, e além de não cumprir a promessa de gerar dez milhões de empregos, o desemprego aumenta. Esse não seria um coquetel social explosivo a curto prazo?

Fábio Konder Comparato - Não há investimentos, porque a maior parte dos recursos disponíveis é canalizada para o pagamento dos juros da dívida pública. É por isso que me irrito supinamente ao ouvir alguns líderes empresariais dizer - ou melhor, repetir beatamente - que a principal tarefa do próximo governo consiste em reduzir os gastos públicos e os impostos. Os ricos só pensam no seu patrimônio. Na verdade, são cerca de 20 mil famílias que vivem dos juros da dívida pública. E quem paga a festa? É a grande maioria pobre da população brasileira. Como o governo paga o serviço da dívida pública com a arrecadação de impostos, e como três quartos desses impostos são indiretos, isto é, regressivos, o pobre arca com um peso tributário incomparavelmente maior do que a população rica.

Marcone Formiga - Por que o senhor acha que no choque entre os banqueiros e a grande massa do povo pobre, o governo optou claramente por não se indispor com os banqueiros? E a conseqüência disso?

Fábio Konder Comparato - Ao assumir a presidência da República, Lula não se despiu da sua condição de grande líder sindical. Por isso, seu estilo de governo é de negociação. Quando, em março de 2003, me encontrei com Lula no Palácio do Planalto, critiquei severamente a manutenção da mesma política econômica do governo FHC, notadamente de endividamento público, que, aliás, só fez crescer, desde 1994. Quando FHC iniciou o seu governo, a dívida pública era de 60 bilhões de reais; ao final dos dois mandatos, pulou para 600 bilhões. Agora, ela já superou um trilhão de reais. Continuamos mantendo a pole position mundial em matéria de juros. O que respondeu Lula? "Fábio, eu vou negociar com os banqueiros". Como sou de reações lentas, não retruquei que ela já não era líder sindical, mas sim presidente de uma nação com 180 milhões de habitantes.

Marcone Formiga - Por ser desinformado, o povo não sabe que perde o emprego porque os bancos pressionam a sua empresa?

Fábio Konder Comparato - O povo só está preocupado com o recebimento do bolsa-família. Para o governo, é muito mais fácil e rende muito mais em termos eleitorais pagar a cada família pobre R$ 60,00 por mês do que criar emprego para os dois milhões e trezentos mil jovens que todos os anos demandam o mercado de trabalho.

Marcone Formiga - O senhor acredita que o desenvolvimento econômico de um país é apoiado em uma política correta, e que a desigualdade social não é provocada pela falta de políticas sociais, mas por uma política econômica perversa, concentradora de renda? Foi isso que aconteceu no governo do PT?

Fábio Konder Comparato - Será preciso, nesta altura dos acontecimentos, repetir o bê-a-bá de que o desenvolvimento nacional é produzido pelo crescimento econômico auto-sustentado e pela justa distribuição de renda; e que não há crescimento econômico sem investimento e não se combate a desigualdade social senão com políticas adequadas de investimento - repito, investimento, e não despesas - em saúde, educação, moradia e previdência.

Marcone Formiga - O senhor está decepcionado com tudo isso que aconteceu no governo?

Fábio Konder Comparato - Decepcionado sim, desanimado nunca.

Marcone Formiga - O Brasil ainda tem jeito?

Fábio Konder Comparato - Repito, com outro sentido, o famoso verso de Manuel Bandeira: "Agora é só tocar um tango argentino". A Argentina saiu do fundo do poço, fazendo exatamente o contrário do que os nossos governos fizeram nos últimos 12 anos! Hoje, reconheçamos, estamos aqui todos no mesmo barco e todos com enjôo. Vamos, pois, nos unir para não afundar. O jeito é reforçar os instrumentos de soberania popular efetiva, ou seja, avançar rumo à democracia direta e participativa; e criar um cérebro institucional no Estado, com um órgão de previsão e planejamento, que elabore os planos de desenvolvimento e orçamentos-programas correspondentes.