Verticalização: relatora diz não à validade de emenda para 2006
Brasília, 22/03/2006 – A relatora no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3685, ministra Ellen Gracie, julgou procedente a ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra a validade da Emenda Constitucional 52 – que põe fim à verticalização das coligações partidárias – já para as eleições deste ano. No entendimento da relatora, o artigo 16 da Constituição, que estabelece que mudanças na lei eleitoral só podem ser aplicadas até, no máximo, um ano antes das eleições, é expresso e não pode ser violado.
“Estamos diante de um padrão clássico do que diz o artigo 16 da Constituição Federal”, afirmou a ministra em seu voto, acrescentando que a Emenda 52 deve ser aplicada somente às eleições posteriores às de 2006. Ainda para a relatora, trata-se de matéria de cunho eminentemente eleitoral. O voto de Ellen Gracie foi proferido logo após a série de sustentações orais sobre a Adin, iniciada com a do presidente nacional da OAB, Roberto Busato, no plenário do STF.
Na ação, a OAB contesta a validade da norma já para as eleições deste ano, o que liberaria os partidos políticos para firmar nos Estados alianças diferentes da feita em nível nacional. No entendimento da OAB, a validade do fim da verticalização para este ano fere o princípio da anterioridade eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição Federal.
A seguir, a íntegra do voto da ministra do STF, Ellen Gracie:
Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.685-8 Distrito Federal
Relatora: Ministra Ellen Gracie
Requerente(s): Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Advogado (a/s): Roberto Busato
Requerido (a/s): Congresso Nacional
Relatório
A Senhora Ministra Ellen Gracie: O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 2º da Emenda Constitucional 52, de 08.03.06, que alterou a redação do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, para inserir em seu texto, no que diz respeito à disciplina relativa às coligações partidárias eleitorais, a regra da não-obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal. O dispositivo impugnado determina a aplicação dos efeitos da referida Emenda “às eleições que ocorrerão no ano de 2002”(fl. 15).
Aponta o requerente ofensa à regra da anualidade estabelecida no art. 16 da Constituição Federal: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Assevera que a emenda constitucional inclui-se no amplo conceito de lei previsto nessa norma constitucional, ou seja, lei é gênero, que abrange espécies como lei constitucional, lei complementar e lei ordinária.
Sustenta ainda que a infringência ao art. 16 da Constituição levada a efeito pelo dispositivo atacado traz consigo violência à garantia individual da segurança jurídica consagrada no art. 5º, caput, da Carta Magna.
Esclarece que a regra da anualidade também deriva do princípio do Estado Democrático de Direito. Assim, por atingir cláusulas pétreas, intangíveis por força do art. 60, § 4º, da Lei Maior, o art. 2º da EC 52/2006 deve ser considerado inconstitucional.
Requer, dessa forma, cautelarmente, a suspensão da vigência da norma contestada e, no mérito, a sua declaração de inconstitucionalidade.
Após o ajuizamento da presente ação, a autora apresentou parecer da lavra do ilustre jurista Fábio Konder Comparato, no qual reitera os argumentos lançados na petição inicial (fls. 26/32).
Com base no art. 12 da Lei 9.868/99, vieram informações da Mesa do Congresso Nacional (fls. 34/38), em que alega não existir a inconstitucionalidade suscitada. Afirma que o art. 16 da Constituição, por se dirigir ao legislador ordinário, não prevalece contra a EC 52/06. Traz precedente desta Suprema Corte (RE 129.392, rel. Min. Sepúlveda Pertence), no qual se afirmou a inoponibilidade do art. 16 da Carta Magna à aplicação imediata de lei complementar a que se refere o art. 14, § 9º, da Constituição.
Considerado esse julgado, com muito mais razão, assevera, a anualidade não pode ser invocada em face de emenda à Constituição. Manifesta-se, portanto, o Congresso Nacional pela improcedência do pedido formulado.
O Advogado-Geral da União, em sua manifestação (fls. 40/72), afirma preliminarmente que, nos termos do art. 3º da Lei 9.868/99, a presente ação deve ser indeferida, ante a ausência de razoável fundamentação quanto à suposta violação ao art. 5º, da Constituição.
Sobre o mérito, alega que o postulado da anualidade do art. 16 da Constituição não se aplica à EC 52/06, pois esta trata de coligações partidárias, matéria que, por ser afeta ao direito partidário, não se confunde com o processo eleitoral. Prossegue sua exposição com o argumento de que, se foi possível ao Tribunal Superior Eleitoral, em março de 2002, estabelecer exegese sobre as alianças partidárias para as eleições daquele ano, sem que isso representasse ofensa à segurança jurídica, “muito mais legítima mostra-se a interpretação fixada pela Emenda Constitucional nº 52 e aplicação das alterações do art. 17, § 1º, da Lei Maior, às eleições de 2006”. Assevera, de outra parte, que a regra do art. 16 da Carta Magna não integra o rol das cláusulas pétreas, pois não decorre necessariamente do princípio democrático e da segurança jurídica. Esclarece que, mesmo tida a anualidade por princípio constitucional intangível, a EC 52/06 com ela não conflita, ao contrário, “concorre justamente para a expansão do rol dos direitos e garantias individuais.” Tece, por fim, considerações sobre a verticalização das alianças partidárias, para, ao cabo, manifestar-se pela improcedência do pedido.
A Procuradoria-Geral da República, em parecer (fls. 74/87) da lavra de seu Procurador-Geral, Doutor Antônio Fernando de Souza, alegou que a inobservância do que disposto no art. 16 abalaria a seriedade do processo eleitoral, pois comprometeria todas as decisões políticas subseqüentes, que estariam sob constantes questionamentos acerca de sua legitimidade intrínseca. Assevera que o art. 60, § 4º, II, ao incluir, no núcleo intangível da Constituição Federal, o voto direto, secreto, universal e periódico, está protegendo, na verdade, o próprio princípio democrático, de caráter evidentemente imutável.
Aduz, outrossim, que o art. 16 da Constituição explicita prevenção ao casuísmo, que deve se dar de uma maneira mais ampla, “precavendo-se o processo eleitoral de qualquer espécie de alteração extemporânea, em detrimento da segurança jurídica exigida pela necessária legitimação do pleito” (fl. 83). Conclui, assim, representar o dispositivo constitucional em análise mecanismo de limitação ao poder estatal, “a ser exercido, portanto, em parâmetros anteriormente estabelecidos, atendendo-se um lapso temporal específico, dentro do qual estará suspensa a eficácia de norma do processo eleitoral” (fl. 86). Opinando, dessa forma, pela procedência do pedido formulado, sintetizou o Chefe do Ministério Público Federal sua posição em ementa que possui o seguinte teor (fl. 74):
“Ação direta de inconstitucionalidade. Rito do art. 12 da Lei 9.868/99. Emenda Constitucional nº 52, de 8 de março de 2006, em que se assegura aos partidos políticos a plena autonomia para adotar o regime de suas coligações eleitorais. Previsão de imediata aplicação. Confronto com o espírito da Constituição. Procedimento como item integrante da evolução do sistema político. Legitimação das decisões políticas por intermédio do procedimento. Alterações dos códigos legais devem se pautar por regras previamente delineadas. Artigo 16 da Lei Fundamental como expressão máxima desse discurso. Abalo do regime democrático em face do enfraquecimento jurídico das instituições. Conflito que se resolve em favor do preceito marcado pelo artigo 16. Disposição que inova o processo eleitoral, rearrumando as formatações pelas quais se expressarão as tendências e os agentes participantes do pleito, que se avizinha. Segurança jurídica a ser prestigiada. Plausibilidade do pedido demonstrada. Patente risco de
inflamação e dúvida social. Parecer pela procedência do pedido.”
Na manhã de hoje, recebi peça da lavra do eminente Ministro Paulo Brossard de Souza Pinto, com considerações coerentes com a manifestação da Mesa do Senado Federal. Fiz distribuir cópias aos eminentes Ministros.
É o relatório. Distribuam-se, com urgência, cópias aos Senhores Ministros.
Voto
A Senhora Ministra Ellen Gracie - (Relatora): Afasto, inicialmente, a preliminar suscitada pela Advocacia-Geral da União, na qual alega ausência de fundamentação da pretensão deduzida na inicial. Afirma que a autora não cumpriu sua obrigação de explicitar de que forma a norma atacada estaria ofendendo os dispositivos constitucionais invocados. Embora sucinta a peça exordial, considero que a requerente cumpriu mais do que o mínimo necessário para bem expor a controvérsia por ela instaurada, pois, ao longo de seu arrazoado, buscou demonstrar de que maneira a inovação impugnada teria contrariado o princípio constitucional da segurança jurídica.
2. Em 8 de março de 2006, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 52, que, ao dar nova redação ao art. 17, § 1º, da Carta Magna, incorporou ao texto constitucional comando que assegura aos partidos políticos autonomia “para adotar (1) os critérios de escolha e (2) o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal”.
O tema tratado na referida Emenda é de natureza eminentemente eleitoral e era exclusivamente disciplinado, por força da competência prevista no art. 22, I, da Constituição1, na legislação ordinária federal, mais especificamente no art. 6º da Lei 9.504, de 30.09.97 (Código Eleitoral), cujo caput enuncia:
“Art. 6º É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso, formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre os partidos que integram a coligação para o pleito majoritário.”
A exegese dessa norma infraconstitucional, principalmente no que se refere ao alcance da expressão “dentro da mesma circunscrição”, gerou dúvidas entre os partidos políticos, que foram afastadas após o resultado da Consulta 715, rel. Min. Garcia Vieira, formulada, em 10.08.01, perante o Tribunal Superior Eleitoral. A interpretação prevalecente foi, então, sintetizada na Resolução 21.002, de 26.02.02, que possui o seguinte teor:
1 CF, art. 22, I: “Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
“Consulta. Coligações. Os partidos políticos que ajustarem coligação para eleição de presidente da República não poderão formar coligações para eleição de governador de estado ou do Distrito Federal, senador, deputado federal e deputado estadual ou distrital com outros partidos políticos que tenham, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato à eleição presidencial. Consulta respondida negativamente.”
Na honrosa qualidade de integrante daquela Corte Superior Eleitoral, participei da assentada ora comentada, na qual teci as seguintes manifestações ao me filiar à tese majoritária:
“Basicamente, a divergência quanto à matéria de fundo se resume à interpretação a ser dada à cláusula contida no art. 6º da Lei nº 9.504/97 (...).
(...)
Conforme desenvolvido no voto de V. Ex.a., Sr. Presidente, quando houver eleições gerais (nacional e estaduais), como é o caso do próximo pleito, a circunscrição maior, necessariamente, abrange e engloba as circunscrições menores, acarretando a necessidade de coerência entre as coligações formadas num e noutro dos planos.
Portanto, o âmbito de validade da restrição a que corresponde a cláusula – dentro da mesma circunscrição – deve ser entendido como o espaço maior, aquele em que se dá a eleição nacional. As coligações que neste patamar se formarem condicionam e orientam as que forem propostas para o âmbito dos estados-membros.
(...)
Mais ainda reforça esta minha convicção o fato de que, ao cidadão-eleitor, esta interpretação sinaliza no sentido da coerência partidária e no da consistência ideológica das agremiações e das alianças que se venham a formar, com inegável aperfeiçoamento do sistema políticopartidário.” (Destaquei)
Da apontada Consulta 715, surgiu o art. 4º, § 1º, da Instrução 552, também do TSE, que disciplinou a escolha e o registro dos candidatos para as eleições do ano de 2002. Esse dispositivo foi, então, impugnado perante o Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.626 e 2.628, ambas de relatoria originária do eminente Ministro Sydney Sanches, as quais não foram conhecidas tendo em vista a natureza secundária, interpretativa e regulamentar da Instrução atacada. O acórdão, cuja redação a mim foi incumbida, possui os seguintes termos (DJ 05.03.04):
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARÁGRAFO 1° DO ARTIGO 4° DA INSTRUÇÃO N° 55, APROVADA PELA RESOLUÇÃO N° 20.993, DE 26.02.2002, DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. ART. 6° DA LEI N° 9.504/97. ELEIÇÕES DE 2002. COLIGAÇÃO PARTIDÁRIA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 5°, II E LIV, 16, 17, § 1°, 22, I E 48, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ATO NORMATIVO SECUNDÁRIO. VIOLAÇÃO INDIRETA. IMPOSSIBILIDADE DO CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE.
Tendo sido o dispositivo impugnado fruto de resposta à consulta regularmente formulada por parlamentares no objetivo de esclarecer o disciplinamento das coligações tal como previsto pela Lei 9.504/97 em seu art. 6º, o objeto da ação consiste, inegavelmente, em ato de interpretação. Saber se esta interpretação excedeu ou não os limites da norma que visava integrar, exigiria, necessariamente, o seu confronto com esta regra, e a Casa tem rechaçado as tentativas de submeter ao controle concentrado o de legalidade do poder regulamentar. Precedentes: ADI n° 2.243, Rel. Min. Marco Aurélio, ADI n° 1.900, Rel. Min. Moreira Alves, ADI n° 147, Rel. Min. Carlos Madeira."