Artigo: Soberania de quem?

domingo, 16 de outubro de 2005 às 07:55

Brasília, 16/10/2005 - O artigo "Soberania de quem?" é de autoria do jurista Fábio Konder Comparato, medalha Ruy Barbosa do Conselho Federal da OAB, e foi publicado na revista Carta Capital:

"Qualquer que seja o seu resultado, o grande mérito do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e de munições é ode mostrar ao povo brasileiro que a verdadeira democracia não se confunde com o fraudulento sistema de representação política que tem vigorado entre nós.

Desde a Independência, a nossa vida política desenvolve-se na rarefeita atmosfera de uma persistente oligarquia, econômica e política. Ao povo, atribui-se o papel de figurante ou simples expectador da peça teatral, onde os atores são unicamente a mal chamada elite e seus agregados. Nesse contexto, a função do processo eleitoral consiste em dar aos eleitores a falsa impressão de que os eleitos obedecem rigorosamente à sua vontade soberana.

Não é difícil entrever, por trás desse engenhoso artifício, a dura realidade oligárquica. O povo elege governantes e parlamentares, mas não pode destituí-los no curso do mandato, nem mesmo quando eles abandonam cinicamente os seus motes de campanha, ou rejeitam idéias e princípios que sempre defenderam quando na oposição. O povo escolhe seus supostos representantes, mas não tem poderes para deles exigir que cumpram minimamente o dever constitucional de respeitar os direitos fundamentais de ordem econômica e social. O povo envia seus delegados às casas legislativas, mas não tem o direito de iniciativa para convocar referendos sobre emendas constitucionais e leis que esses delegados aprovam, ou acordos internacionais por eles ratificados, manifestamente contrários ao bem comum do povo, ou lesivos ao interesse nacional.

Na teoria jurídica desde muito assentada. essa relação de representação nada tem a ver com o mandato, mas tem tudo a ver com a tutela ou curatela de incapazes. Para os nossos oligarcas, com efeito, o povo é sempre uma criança ou um deficiente mental, cujos interesses devem ser defendidos unicamente por eles.

Eis por que a própria idéia de "democracia" já soa como um grosseiro embuste para a maioria do nosso povo. Numa pesquisa realizada no corrente ano, o instituto chileno Latinobarómetro confirmou o fato de que, de todos os povos da América Latina, o brasileiro é um dos que menos prezam o regime democrático. Interrogados sobre se a democracia seria preferível a qualquer outro regime político, 59% dos brasileiros entrevistados responderam negativamente. Foi para enfrentar essa tendência à progressiva degradação dos nossos costumes políticos, para a qual o presente governo federal vem dando, lamentavelmente, a contribuição que todos sabem, que a Ordem dos Advogados do Brasil lançou, em 15 de novembro de 2004, a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia.

Nesta primeira etapa da campanha, vêm sendo apresentados, à Câmara dos Deputados, às assembléias legislativas e às câmaras municipais de todo o País, projetos de lei, permitindo que, tanto os plebiscitos, quanto os referendos, sejam realizados mediante iniciativa popular, ou por requerimento de um terço dos membros de cada casa legislativa, de modo a não submeter a manifestação do povo soberano à decisão arbitrária da maioria parlamentar.

Não é preciso grande esforço de raciocínio, para entender que a existência de um povo unido e consciente do seu destino representa o maior obstáculo à dominação capitalista. Convém lembrar que o adjetivo publicus, em latim, designa o que pertence ao povo. e que não pode, por conseguinte, ser sujeito à apropriação privada. Isso representa a negação mais radical da vida republicana. O objetivo maior do neoliberalismo, como ninguém ignora, consiste em tudo privatizar. dos bens e serviços públicos, à virtude e aos costumes políticos.

Já conseguimos, sob o impacto da vaga mundial de neoliberalismo, privatizar largamente neste país os serviços públicos de educação, de saúde, de previdência e assistência social. Vamos agora privatizar também a segurança? Pois é disso que se trata, no referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo. Os pobres não têm dinheiro para comprá-las e os ricos já dispõem, a seu serviço exclusivo, de uma multiplicidade impressionante de empresas de segurança privada.

Para os nossos oligarcas. tal como para as quadrilhas do crime organizado, o essencial é fazer com que o povo se submeta inteiramente à sua dominação, em vez de contar com um serviço público de segurança, eficiente e democrático".