EXAME DE ORDEM: O VERDADEIRO VESTIBULAR DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL
O art. 8o, inciso IV, da Lei no 8.906, de 1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB), exige a aprovação em “Exame de Ordem” para inscrição, como advogado, nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Os procedimentos do certame em questão estão regulados no Provimento no 144, de 2011, do Conselho Federal da Ordem.
A última investida contra o exame de ordem ocorreu no dia 9 de outubro do corrente por ocasião da apreciação, pela Câmara dos Deputados, da medida provisória que trata do controverso programa governamental “Mais Médicos”. Na ocasião, o Deputado Federal Eduardo Cunha apresentou emenda voltada para modificar o Estatuto da Advocacia e da OAB no sentido de extinguir o aludido exame (1).
O parlamentar carioca argumentou que: a) vigora no Brasil a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão; b) o exame de ordem é uma exigência absurda apenas para uma carreira; c) a constitucionalidade da obrigação está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal; d) a fiscalização da OAB seria mais eficaz no combate aos maus profissionais e e) a OAB arrecada cerca de 75 (setenta e cinco) milhões de reais por ano com o exame (2). Apesar do esforço realizado, a proposição foi rejeitada por 308 contra 46 votos (3).
O Presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, saudou a decisão da Câmara dos Deputados. Afirmou o dirigente máximo da Ordem: “Essa é uma vitória da cidadania brasileira, conquistada por meio do diálogo da OAB Nacional com o Congresso (…) a capacitação é indispensável para a adequada defesa do cidadão. Daí decorre a importância da manutenção do Exame de Ordem como critério de seleção dos que possuem o mínimo de conhecimento jurídico para bem orientar e defender os direitos e interesses dos cidadãos. Não podemos condenar as pessoas, especialmente a população mais carente, a um profissional sem preparo suficiente para exercer o papel de garantidor da cidadania” (3).
É importante destacar que os argumentos do parlamentar federal não são suficientes ou convincentes para produzir a eliminação do exame de ordem.
Com efeito, a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão é garantida na Constituição, precisamente no art. 5o, inciso XIII, “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Sintomaticamente, o deputado, na sua justificação, deixou de transcrever essa cláusula final do dispositivo constitucional. Reside exatamente aí o fundamento jurídico maior para a exigência do exame de ordem. O legislador pode e deve, e o fez muito bem no âmbito do Estatuto da Advocacia e da OAB, definir requisitos e condições (qualificações) razoáveis para o exercício de profissões. Levam-se, na devida conta, os riscos e problemas que o desempenho ineficiente de certas ofícios podem trazer para o cidadão e a sociedade como um todo.
Por outro lado, a existência do exame de ordem para o exercício da advocacia e a ausência de verificação similar para outras carreiras não invalida juridicamente (ou politicamente) o instituto. O caminho mais adequado para a sociedade brasileira é justamente estender a aprovação em exames correlatos como requisitos para o exercício de outras profissões socialmente relevantes.
Registre-se, ademais, que o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade e em sessão plenária realizada em 2011, já reconheceu a constitucionalidade do exame de ordem. Eis, nesse sentido, a ementa do Recurso Extraordinário n. 603.583:
“TRABALHO – OFÍCIO OU PROFISSÃO – EXERCÍCIO. Consoante disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. BACHARÉIS EM DIREITO – QUALIFICAÇÃO. Alcança-se a qualificação de bacharel em Direito mediante conclusão do curso respectivo e colação de grau. ADVOGADO – EXERCÍCIO PROFISSIONAL – EXAME DE ORDEM. O Exame de Ordem, inicialmente previsto no artigo 48, inciso III, da Lei nº 4.215/63 e hoje no artigo 84 da Lei nº 8.906/94, no que a atuação profissional repercute no campo de interesse de terceiros, mostra-se consentâneo com a Constituição Federal, que remete às qualificações previstas em lei. Considerações”.
A Ordem dos Advogados do Brasil, por suas Seccionais e por seu Conselho Federal, tem exercido com considerável rigor suas funções de fiscalização do exercício da profissão. Aponto, entre outros, dois elementos para demonstrar essa afirmação: a) uma simples pesquisa no site do CFOAB identificará a manutenção de uma quantidade significativa de sanções disciplinares por faltas no curso das atividades profissionais, inclusive centenas de exclusões (4) e b) a OAB/DF chega a publicizar as exclusões de advogados de seus quadros (5). Portanto, deve ser rechaçada a imputação vazia e genérica de desídia da OAB quanto à escorreita realização de suas funções fiscalizatórias do exercício da profissão.
Também não procede a afirmação de que a OAB insiste na realização do exame de ordem em função da “arrecadação milionária” decorrente das taxas de inscrições (setenta e cinco milhões de reais por ano). O argumento não resiste a uma simples operação aritmética. Sem o exame de ordem e com o ingresso de mais de 2 (dois) milhões de bacharéis nos quadros da instituição, a receita anual da OAB aumentaria em mais de 1 (um) bilhão de reais (6). Obviamente, numa perspectiva estritamente financeira, ninguém, no gozo das faculdades mentais, trocaria mais de um bilhão de reais por setenta e cinco milhões de reais.
Embora acertadas as referidas ponderações do Presidente Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ouso defender a manutenção do certame em questão por razão distinta e bem específica. Sustento que o exame de ordem deve ser mantido e fortalecido pela singela e inusitada razão de que ele atualmente funciona como o verdadeiro vestibular dos cursos de direito. Explico.
Observem-se os seguintes dados (7)(8):
a) número de cursos de direito no Brasil: 1.240;
b) número de cursos de direito no resto do mundo: 1.100;
c) número de advogados no Brasil: 791.960;
d) número de bacharéis em direito (não-advogados) no Brasil: mais de 2 milhões.
Existe um outro dado crucial que pode ser levantado com precisão. Trata-se da pública e notória constatação de que o número de vagas nos cursos de direito em funcionamento igualam ou superam o número de interessados em ocupá-las. Assim, todos os candidatos a estudante de direito alcançarão essa condição numa das instituições de ensino superior, notadamente as particulares. Perceba-se que a feroz concorrência entre as instituições de ensino superior não permite o “luxo” de dispensar um futuro “universitário”, facilmente capturado pela concorrente instalada no bairro vizinho, na rua ao lado ou mesmo no final da rua.
Uma conclusão é inexorável e irrefutável: o vestibular para o curso de direito literalmente deixou de existir no Brasil (9). O que atualmente é chamado de vestibular não passa de um procedimento prévio e meramente protocolar ao fornecimento de dados, notadamente financeiros, e documentos do futuro aluno.
A supressão do vestibular tem um preço. Preço muito alto, ressalte-se. Como não existe um crivo ou seleção consistente, o nível intelectual médio dos alunos é baixo, muito baixo (10). Também baixo ou muito baixo é o nível do ensino jurídico observado. Afinal, não adiantam professores mestres e doutores, métodos ativos de ensino, bibliotecas aparelhadas, tecnologia de ponta e outras providências nesse sentido, se existem profundas deficiências de formação acadêmica e intelectual entre os estudantes de direito.
Acrescente-se a esse já deteriorado quadro, a perversa lógica reinante na atual sociedade do consumo “fácil”, “rápido” e “superficial”. Impera, na nossa sociedade capitalista com nível de selvageria ímpar, e povoa o imaginário da esmagadora maioria da juventude brasileira, a “lógica” do direito (natural) aos “prazeres” e “vantagens” da vida com o mínimo de esforços e responsabilidades, preferencialmente sem nenhum esforço e nenhuma responsabilidade.
Em função do exposto, defendo com veemência a manutenção e fortalecimento do exame de ordem, como registrado linhas atrás. Faço essa defesa por uma razão simples, singela e, até certo ponto, inusitada. Em suma, suprimir o exame de ordem significa, no quadro atual dos cursos jurídicos, eliminar o verdadeiro e único vestibular existente (como prova de seleção de condições mínimas para ingresso e permanência no mundo da ciência e do trabalho especializado).
Infelizmente, é uma profunda (e necessária) distorção sustentar o exame de ordem como o verdadeiro (e tardio) vestibular do sistema em funcionamento. Defendo a derradeira fronteira de controle de um mínimo de qualidade e consistência para o ensino jurídico e, por extensão, para o exercício da nobre profissão de advogado.
NOTAS:
(1) Câmara rejeita proposta para acabar com Exame de Ordem. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-out-09/camara-deputados-rejeita-proposta-acabar-exame-ordem>. Acesso em: 10 out. 2013.
(2) Proposta e justificação. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/jabuti-tenta-acabar-exame-ordem.pdf>. Acesso em 10 out. 2013.
(3) 308 x 46: Câmara mantém Exame de Ordem. Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/26207/308-x-46-camara-mantem-exame-de-ordem>. Acesso em: 10 out. 2013.
(4) Cana Ética e Disciplina do Conselho Federal da OAB. Disponível em: <http://eticaedisciplina.oab.org.br>. Acesso em 10 out. 2013.
(5) Relação de advogados excluídos pela OAB/DF. Disponível em: < http://www.oabdf.org.br/wp-content/uploads/2013/03/RELACAODEADVOGADOSEXCLUIDOSPELAOABDF.pdf>. Acesso em: 10 out. 2013.
(6) mais de 2.000.000 de novos advogados x R$ 523,13 (a menor anuidade em 2013, definida pela OAB/RN) = mais de R$ 1 bilhão. Dados das anuidades obtidos no site Migalhas (Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI173615,101048-Anuidades+das+OABs+variam+significativamente. Acesso em: 11 out. 2013).
(7) Brasil tem mais cursos de Direito do que todos os outros países do mundo juntos. Disponível em: <http://guiadoestudante.abril.com.br/vestibular-enem/brasil-tem-mais-cursos-direito-todo-mundo-603836.shtml>. Acesso em: 10 out. 2013.
(8) INSTITUCIONAL/QUADRO DE ADVOGADOS. Disponível em: <http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>. Acesso em: 11 out. 2013.
(9) Parece que a situação abrange os demais cursos universitários a partir dos seguintes dados do MEC/INEP (disponíveis em: <portal.mec.gov.br>):
a) 2001: 12.741 cursos com 3.062.705 matrículas;
b) 2012: 32.050 cursos com 7.058.084 matrículas;
c) 2012: 2.416 instituições de educação superior, sendo 304 públicas e 2.112 privadas.
(10) Contabilizo mais de uma década de docência em cursos de graduação e pós-graduação em direito. Nos primeiros, já enfrentei as seguintes situações emblemáticas: a) a palavra “herança” grafada como “eranssa”; b) dezenas de registros da palavra “insenções”; c) perguntas sobre o significado das seguintes palavras: esgotado, excepcionar, instituir, superveniência, entre outras; d) profundas e recorrentes dificuldades de interpretar um enunciado e identificar o assunto abordado na pergunta formulada e e) dramáticas dificuldades de exprimir um raciocínio com começo, meio e fim num parágrafo com cinco linhas. É importante frisar que existem significativas e honrosas exceções. Identifico alguns ex-alunos atuando como renomados advogados, membros do Ministério Público, magistrados e consultores de Casas Legislativas.