O trote e o antraz

terça-feira, 30 de outubro de 2001 às 05:00

por Luiz Flávio Borges D’Urso

Não faz muito tempo, quando se ouvia falar em pó branco e imediatamente se associava à cocaína. Isso mudou. Hoje, quando se fala em pó branco, de pronto um certo pânico toma conta das pessoas que temem tratar-se do antraz, uma bactéria que pode ser fatal.

Aproveitando-se dessa mudança e dos fatos lamentáveis ocorridos nos EUA, onde se vive um momento de terrorismo bacteriológico, algumas pessoas, aqui no Brasil, resolveram assustar outras, remetendo-lhes pelo correio inofensivo pó branco, provocando, com isso, imenso transtorno no cotidiano urbano.

Mas, afinal, essa “brincadeira”, sem dúvida de péssimo gosto, é proibida por lei? Felizmente, sim.

Trata-se de contravenção penal, prevista no art. 41 da Lei 3.088 de 03 de outubro de 1941. É a infração penal denominada falso alarma, que veda a conduta que visa provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou que pratique qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto. Esse dispositivo estabelece uma pena de prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa.
Creio que seja o melhor enquadramento penal, pois tenho lido nos noticiários outros enquadramentos, os quais não são satisfatórios à luz da conduta e de sua intenção, senão vejamos.

Primeiro noticiou-se que se tratava de falsa comunicação de crime, cuja previsão encontra-se no art. 340 do código penal. A conduta do trote em nada se assemelha à falsa comunicação de crime, pois esta vislumbra a conduta de quem provoca a ação da autoridade pela forma de comunicação, todavia, de um crime inexistente.

Assim, esse crime do art. 340 só poderia ser praticado por aquele agente que comunicasse à autoridade um crime inexistente e não por aquele agente que limitou-se a postar uma carta com pó branco inofensivo, porquanto este agente visa outro objetivo, o de semear pânico, tumulto e transtorno com seu trote.

Outro crime que se noticiou foi o de ameaça, o qual também não seria a melhor interpretação, pois tal delito previsto no art. 147 do código penal exige que o agente ameace alguém, por qualquer modo, objetivando um mal injusto e grave. O espírito do legislador, neste caso, foi de vedar a conduta da promessa de um mal, não da realização deste. Assim, penso que difere da conduta da remessa do pó branco, na tentativa de infundir o pânico pela contaminação do antraz, salvo se o agente ameaçasse enviar o antraz, neste caso, sim, ocorreria o crime de ameaça. Observa-se que neste delito há necessidade de representação da vítima, vale dizer, é preciso que a vítima autorize o Estado a investigar essa conduta.

Dessa forma, parece-nos que outro enquadramento melhor não há para o trote que o da contravenção penal do falso alarme, porquanto o objetivo do agente dessa “brincadeira” é produzir pânico em sua vítima, que pensará estar contaminada com o antraz, ou ainda objetivar temor coletivo face ao noticiário internacional que dá conta de contaminação coletiva e poderá o agente, ainda, esperar que sejam acionadas as autoridades, resultando numa grande operação e gigantesco tumulto.

Na verdade, o trote corriqueiro não é conduta das mais nocivas à sociedade, todavia, sempre provoca problemas. Atualmente essa realidade alterou-se. Há enorme nocividade em se enviar um envelope contendo, por exemplo, um pouco de talco para alguém. São os novos tempos e a lei também não estava preparada para isso, porém, para essa conduta, há previsão legal que, se não for a ideal, é a possível e a que afastaria a impunidade.

Vale salientar que o trote examinado aqui foi, exclusivamente, a conduta de quem postar uma carta com inofensivo pó branco, para assustar. Caso estejamos diante de alguém que, para brincar, comunique a autoridade o recebimento do antraz, sabendo que tal não é verdade, aí sim estaremos diante do crime de falsa comunicação de crime, com pena que vai de um a seis meses de detenção.

Caso não seja um trote e o pó tenha nocividade letal, podendo contaminar um grande número de pessoas, estaremos diante do crime de epidemia, previsto no art. 267 do código penal, que prevê a conduta do agente que causa epidemia mediante propagação de germes patogênicos, com cominação de pena de reclusão de dez a quinze anos. Caso haja o resultado morte, estaremos diante de um crime hediondo e a pena cominada será aplicada em dobro. Quem envenena água potável ou substância alimentícia ou medicinal também estará sujeito a uma pena de dez a quinze anos.

Observe-se, por fim, que nestes casos todos examinados neste texto, o que se incrimina são as condutas em si, independente do resultado, pelo qual o agente também responderá caso ocorra, incluindo-se aqui o resultado do próprio trote, que poderá estar muito além da previsão do “brincalhão”.

__________________________________________________
Luiz Flávio Borges D’Urso é advogado criminalista, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRAC), presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), conselheiro e diretor cultural da OAB/SP, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP, presidiu o Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária de São Paulo e é membro do Conselho Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.