Artigo: O câncer da advocacia
Brasília,02/12/2004 - O artigo " O câncer da advocacia" é de autoria do conselheiro federal pela OAB de São Paulo, Orlando Maluf Haddad:
"De há muito, os advogados do Brasil conquistaram, às custas de muito sangue, suor e lágrimas (e bem antes da mais famosa declaração de Churchill), o honroso mister de liderar os mais significativos movimentos da história em prol da dignidade do ser humano.
De há muito os advogados do Brasil fizeram por merecer a entidade que nos abriga, símbolo da mais expressiva respeitabilidade da nação, esteio maior dos ideais democráticos que pontuam o destino de nosso povo.
De há muito e por longas décadas os advogados do Brasil impregnam os poderes constituídos com a chama imorredoura do respeito à Constituição, dos princípios de igualdade, fraternidade e legalidade, da intransigente e destemida defesa dos fracos e das minorias carentes, do exemplar respeito por todas as religiões e credos do país.
De há muito os advogados do Brasil tem por missão conviver diuturnamente com um combalido Poder Judiciário de que necessitam para instrumentalizar os direitos da cidadania que tem a exclusiva primazia de postular.
De há muito os advogados do Brasil assistem, impotentes, à paulatina, irrefreável e sintomática degeneração desse Poder Judiciário, que parece não ter forças próprias para reagir e buscar a real igualdade com os demais poderes da república, em termos de recursos adequados, necessária atualização e modernização, aumento do número de juízes e servidores, atendimento digno da população e, principalmente, real independência em relação aos demais poderes.
De há muito os advogados do Brasil conseguem cada vez menos obter a justa e rápida prestação jurisdicional que o Estado é obrigado a efetivar.
De há muito os advogados do Brasil se vêem cada vez mais afastados de seus clientes presos, questionados por suas famílias aflitas, isolados no seu esforço para atender rapidamente as injustiças em todos os ramos do Direito (família, previdenciário, trabalhista, patrimonial etc), tendo cada vez mais distante e inoperoso o Judiciário, que deveria amparar a almejada justiça.
De há muito os advogados do Brasil vêm demonstrando compreensão e solidariedade para com a grande maioria dos juízes, serventuários e membros do Ministério Público, em face do descomunal acúmulo de serviços ocasionado também pelo previsível aumento gradativo da litigiosidade.
De há muito os advogados do Brasil sustentam uma OAB forte e representativa, ao mesmo tempo em que se enfraquecem, individual e profissionalmente, mercê das mazelas que existem e atingem a sociedade, refletindo-se em suas próprias vidas e de suas famílias.
Na incessante e determinada busca pelo Estado de Direito, os advogados do Brasil dirigiram seus esforços para a plena vivência democrática de nossa sociedade, lutando corajosamente contra a opressão, a violência, autoritarismo, as ditaduras civis e militares.
Em 1988, com irrecusável merecimento, a chamada “Constituição cidadã” outorgou ao advogado destaque ímpar, como profissional imprescindível à administração da justiça (art. 133); seis anos depois foi publicado o Estatuto da OAB (Lei 9806/94), que confere ao advogado a exclusividade de postular e defender os direitos do cidadão brasileiro ou estrangeiro em território nacional, além de ratificar as prerrogativas já centenariamente conquistadas.
Em que pese tudo parecer estar de vento em pôpa para o pacífico progresso evolutivo da classe, em pleno Estado de Direito que, em alguns aspectos, alcança o inalcançado em países de primeiro mundo, surge o pior inimigo, traiçoeiro, silencioso, voraz como um carcinoma corroedor das entranhas inescrutáveis da complexa advocacia.
Ao contrário das batalhas tradicionalmente frontais contra o arbítrio, contra as desigualdades, contra os algozes da liberdade, vislumbra-se, de há muito, uma perigosíssima e insinuante destruição que visa, ainda que não completamente consciente, a morte do que mais precioso possuem os advogados brasileiros: sua real independência, seu natural destemor e desassombro face as mil dificuldades do exercício da profissão, a confiança do cidadão e da cidadania no seu descortínio, no seu senso de justiça e no seu saber, na sua moral e na sua cultura.
Esse câncer só é detectável quando já avançado na sua horripilante missão de destruir o tecido tão arduamente construído pelos advogados do Brasil.
Ele não aparece com clareza, sua atuação se esconde nas sombras do tecido que destrói ininterruptamente.
Em outras palavras, a doença vem das próprias instituições democráticas que os advogados do Brasil erigiram com liderança e pioneirismo. Vem das casas das leis (Câmaras Federais e Municipais, Senado e Assembléias), do Executivo (incluindo Ministérios e Secretarias) e até do Judiciário (Tribunais em geral).
Aparece nas CPIs, nos projetos que tramitam sorrateiramente, nas manifestações as despreparadas assessorias intentam a supressão da livre atividade da advocacia.
Aparece nas delegacias de polícia, nos meandros e escaninhos administrativos do poder público, nos vergonhosos e abomináveis procedimentos previdenciários.
Aparece nos juízos singulares onde o povo mais diretamente clama por justiça (Juizados Especiais), na justiça comum e nas especiais.
A rigor, por exemplo, e é somente um exemplo quais alterações dos Códigos (de Direito Material e/ou Processual) passou por ampla e detalhada discussão âmbito da advocacia? Quais projetos dos advogados, em prol da advocacia brasileira, foram aprovados e exercitados nestes últimos dez anos?
Qual (is) a (s) sanção (ões) exemplar (es), de repercussão nacional, aplicada a quem ofendeu as prerrogativas dos advogados (e da cidadania, por óbvio)?
Qual o movimento solidário de outras instituições não advocatícias, que tratam o Direito e a Justiça, a uma das principais causas permanentes da advocacia, que é o princípio da ampla defesa e do devido processo legal?
O que de concreto nossos governantes responsáveis fizeram pela qualidade do ensino do Direito?
Qual o Sindicato que, consoante os inúmeros princípios básicos que todos afirmam defender, alinha com os advogados nos seus objetivos?
Não há responsáveis específicos que causam a moléstia, a meu ver. O surgimento e progresso do câncer estão na ausência de consciência de cada advogado sobre sua importância como ser humano, profissional e defensor da sociedade.
A alienação ou indiferença aos predicados básicos, filosóficos e institucionais, que compõe as conquistas da advocacia é a maior causa do carcinoma devorador.
Nós, os cerca de 450.000 advogados brasileiros, temos que encetar e acentuar luta contra a silenciosa e devastadora desvalorização de nossa classe.
Os instrumentos constitucionais e legais à disposição só terão serventia e eficácia se plenamente arraigados nas mentes e corações de todos que advogamos. Se assim não for, corremos o sério risco de perdê-los, após décadas de ingente combate para conquistá-los.
O zelo e permanente e solidária vigilância sobre os direitos e prerrogativas dos advogados somente terão o condão de preservá-los de fato se cada qual se imbuir da vital importância dos mesmos para a sobrevivência digna da advocacia.
A iderrogável e intransigente observância aos preceitos da ética elevará o respeito que cada advogado brasileiro merece de seus concidadãos.
O permanente aperfeiçoamento da cultura jurídica possibilitará a necessária atualização e preparo dos advogados na defesa dos direitos particulares e coletivos da nação brasileira.
Em suma, a detecção e eliminação do câncer depende fundamentalmente de cada advogado deste país. À medida em que houver a justa e correspondente reação a qualquer ato que vise abalar ou dificultar o pleno exercício profissional, o advogado estará preservando não somente a si mesmo, mas a classe que mais contribuiu e contribui para que todas as demais possam usufruir das benesses da democracia.
Cada advogado deve insistir para que as escolas de Direito destaquem os direitos e prerrogativas, assim como a Ética, em seus currículos.
Cada advogado deve se superar na defesa de seu (sua) colega que for atingido por qualquer meio, seja qual for (a) ofensor (a).
Cada advogado deve dar o exemplo da plena consciência de sua importância no cenário de sua comunidade local, de seu estado e do país.
O povo em geral precisa saber que o advogado não é um caça-níqueis e emperrador da justiça que muitos acoimam de forma absolutamente injusta. Na verdade, é preciso divulgar o verdadeiro e honroso mister do profissional que tem por missão a defesa dos cidadãos e da pátria brasileiros.
Urge que todas as entidades da classe, principalmente a OAB, por seu Conselho Federal, Seccionais e Subsecções, realizem campanhas permanentes no sentido da verdadeira e imprescindível elucidação da população sobre o que significa a advocacia e ser advogado.
Urge que as medidas contra os que ofendem direitos e prerrogativas dos advogados sejam realizadas de imediato e com eficiência, para maior ressonância junto à sociedade.
Urge que os maus profissionais continuem a ser corretamente punidos pela Ordem, para não conspurcarem a imagem da classe.
Urge que as faculdades de Direito se sensibilizem para formar verdadeiros advogados, e não burocratas mediocrizados pela incompetência e avareza com que o mau ensino prejudica os incautos alunos e bacharéis, destruindo justos sonhos de quem paga fortunas para amealhar conhecimentos.
É preciso ressaltar que, com o manancial institucional disponível na atualidade, ainda que padecente de carências, defeitos e imperfeições, é plenamente viável a redenção da advocacia nos planos universal e corporativo, se atentarmos todos para o grande, sutil, silencioso - mas avassalador -, assintomático - mas real -, tumor que a todos ameaça, e contra ele dirijamos nossas seculares armas jamais derrotadas, quais sejam a consciente união da classe, capacidade de renúncia a objetivos menores e competência ininterrupta na vigilância e defesa de nossas tão valorosas conquistas."