FGTS, o maior acordo do mundo, ou de como lesar advogados...
por Edésio Passos
Finalmente, sancionada lei que reconhece aos trabalhadores o direito na recuperação em valores devidos pelo FGTS a partir de junho de 1987, embora apenas parcialmente quanto a perdas de 12/88 a 02/89 (16,64%) e abril/99 (44,08%). Eis aí, para 60 milhões de empregados e servidores públicos celetistas, a Lei Complemantar nº 110, de 29.06.2001, que institui contribuições sociais, autoriza créditos de complementos de atualização monetária em contas vinculadas do FGTS, ou seja, o "maior acordo do mundo...", como quer a propaganda do governo federal. Agora, é a hora dos os operadores do direito, dirigentes empresariais e dos trabalhadores, representações sindicais e políticas, economistas e tributaristas, comentaristas da imprensa, iniciar a análise da nova lei em seus aspectos constitucionais, conceituais e pragmáticos, em especial diante dos muitos desencontros jurídicos que provocará.
De início, quero me ater a aspectos relacionados com alguns princípios éticos e constitucionais relacionados com o exercício e efetividade do direito na democracia, as conseqüências para os trabalhadores e servidores públicos que recorreram ao Judiciário para a reparação da lesão sofrida, suas entidades sindicais e, especialmente, face os advogados. Retomar algumas considerações do advogado Roberto de Figueiredo Caldas, inseridas em parecer datado de 06 de maio de 2001, endereçado e aprovado pela Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB, face a sua atualidade e como indicativo de questões relevantes. Oportunamente, com o passar dos dias e com as luzes dos mais esclarecidos analistas, retornaremos a outros pontos.
O artigo 7º da Lei Complementar nº110/2001 determina: "Ao titular da conta vinculada que se encontre em litígio judicial visando ao pagamento dos complementos de atualização monetária relativos a junho de 1987, dezembro de 1988 a fevereiro de 1989, abril e maio de 1990 e fevereiro de 1991, é facultado receber, na forma do art. 4º, os créditos de que trata o art. 6º, firmando transação a ser homologada no juízo competente". Este artigo está conjugado com a obrigação de assinatura de termo de adesão, na forma do art. 4º, III, com "declaração do titular da conta vinculada, sob as penas da lei, de que não está nem ingressará em juízo discutindo os complementos de atualização monetária relativos a junho de 1987, ao período de 1º de dezembro de 1988 a 28 de fevereiro de 1989, a abril e maio de 1990 e a fevereiro de 1991".
As ações judiciais relativas à recuperação das perdas do FGTS originárias das entidades sindicais e de grupos de empregados e servidores públicos desde 1991 são as responsáveis pela reparação do grande prejuízo financeiro acarretado aos trabalhadores. Essas ações foram intentadas pelo sindicato como substituto processual, ou por pedidos plúrimos com ou sem a assistência sindical e por ações individuais. O mérito dessa iniciativa está com os advogados que, ao questionarem a não correção das contas do FGTS com os índices de desvalorização da moeda relacionados com os planos econômicos do governo federal, possibilitaram que o Poder Judiciário reparasse, embora parcialmente, a arbitrariedade do Executivo Federal. Ao mesmo tempo, pela decisão das entidades sindicais de trabalhadores apoiando a iniciativa. E, finalmente, da Procuradoria do Trabalho que, através de ações civís públicas, objetivou o mesmo resultado. Por evidente que para o ajuizamento das ações foi necessário o dispêndio financeiro, operacional e de tempo por parte de advogados, trabalhadores e entidades sindicais que não poderão ficar sem a devida compensação, assim como o pagamento das custas processuais em favor do Tesouro Nacional e ressarcimento aos valores pagos no ajuízamento da ação.
Salienta o dr. Roberto de Figueiredo Caldas, advogado que atuou no STF em defesa do primeiro grupo de trabalhadores que obteve ganho de causa na Excelsa Corte, em seu parecer: "A advocacia brasileira fez um grande serviço em prol da Nação no episódio da correção do FGTS. Já são cerca de um milhão de ações ajuízadas contra os desrespeitos estatais. Muito foi dispendido pelos cidadãos e pelos próprios advogados. Somente pela via judicial, em sua última instância, o Estado se deu por vencido, e para isto foi fundamental o trabalho perseverante e atento de todos".
Mas, ao contrário o que deveria ser ética e legalmente estabelecido, o projeto de lei do governo acatado pela maioria governista no Congresso Nacional e significativo número de entidades sindicais de trabalhadores, penaliza justamente aos que ingressaram em juízo (sindicatos e trabalhadores) e aos advogados. Há milhares de ações tramitando em favor de milhões de trabalhadores. Mas não há norma na lei complementar sancionada que obrigue a: a) imediato levantamento das ações e seus autores; b) responsabilidade do FGTS/União Federal/Caixa Econômica no pagamento das custas processuais, honorários de advogado e honorários periciais/cálculos; c) possibilidade do recebimento do valor atribuído pelo governo ao trabalhador e a seqüência da demanda pela diferença.
O governo obriga o trabalhador a uma camisa-de-força: a "transação" judicial sem parâmetros definidos, ou a pura e simples desistência do processo, sob pena de negar o pagamento do que deve por sua direta e exclusiva responsabilidade. E, o que é pior, ainda se utiliza de um argumento pretensamente democrático, a falsa opção: "quem não quiser transacionar, desistindo do processo, pode continuar com ele. Aí, a pendência deverá se arrastar por muitos anos...". Coloca, ainda, os advogados em má situação, pois muitos trabalhadores pressionarão seus defensores para aceitarem a "transação", mesmo que prejudicial a ele próprio, trabalhador, e ao seu advogado.
Argumenta o ilustre advogado brasiliense: "A previsão legal é clara quanto à incidência de honorários advocatícios, senão se verifique nos termos da Lei nº 8.906/94, o Estatuto da Advocacia e da OAB", citando o parágrafo 4º do art. 24, a saber: "O acordo feito pelo cliente do advogado e a parte contrária, salvo aquiescência do profissional, não lhe prejudica os honorários, quer os convencionados, quer os concedidos por sentença". E comenta: "Ora, o governo está fugindo de discutir os honorários advocatícios porque sabe que, a incluí-los no acordo como prevê a legislação, ele próprio é quem deverá arcar com os custos, haja vista que é a parte sucumbente em juízo e se novas ações forem ajuízadas, além das despesas com o pagamento integral da correção, terá ainda o percentual de honorários advocatícios, normalmente entre 10% a 20%".
Dentre as providências que foram adotadas pela OAB, uma delas foi a apresentação de emenda pelo deputado federal José Antônio Almeida ( PSB/MA) determinando que a efetivação da transação judicial do crédito devido ao trabalhador não incluiria os valores relativos aos honorários advocatícios, a serem depositados em juízo. Esta emenda foi rejeitada e a lei complementar sancionada não obriga ao cumprimento da lei federal relativa ao exercício da profissional de advogado quanto ao direito de honorários pelos seus serviços em juízo.
Qual seria a atitude certa a ser adotada, eticamente responsável? Desde que os autores aceitem os percentuais definidos pelo Supremo Tribunal Federal, determinar o imediato cálculo dos valores pela contadoria judicial, acrescidos de custas e honorários e o pagamento do valor pela Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, Ré nas ações. Ou, com a concordância dos valores atribuídos pelo governo, o acréscimo aos mesmos das custas e honorários, sem maiores delongas. Não é desta forma o que sucede com os nossos débitos para com a Fazenda Pública? Reconhecido o direito do Estado ao tributo, faça-se a conta, verifiquem-se os encargos, pague-se ou leiloe-se os bens penhorados. Por que não há reciprocidade quando se trata da lesão do direito sofrida pelo trabalhador e reconhecida pelo STF? A inexistência dessa garantia, explicitamente inserida na Lei, praticamente retira dos lesados o direito democrático de resistência contra o arbítrio, agora travestido de norma legal.
Salienta o advogado Roberto de Figueiredo Caldas: "O Estado realmente democrático e de Direito, após decisão judicial que aponta erro de determinada conduta administrativa, simplesmente corrige seu ato ab initio e assume todas as conseqüências daí decorrentes. Vale dizer, paga o que deve aos diretamente envolvidos na demanda específica e busca todos os cidadãos em idêntica situação para ressarcir-lhes os prejuízos. Estende a decisão administrativa, independente de ação judicial, para todos". "Dentro deste contexto é que se deve perceber que o esquecimento proposital de honorários advocatícios não é um desapreço, prima facie, aos advogados, mas aos cidadãos que buscam seus serviços mediante contraprestação".
Moral da história: a aqueles que deveriam ser reconhecidos méritos pela defesa das normas constitucionais e legais, são atribuídas novas perdas, sacrifícios e desconsiderações. E também aos trabalhadores que restaram na expectativa de uma definição judicial sem o ingresso prévio de ação, será proibido questionar o valor, se quiser recebê-lo, pois se lhe nega o direito discutir qualquer diferença. Tudo isso, afronta o princípio da moralidade pública, o princípio da recorribilidade ao Judiciário contra a lesão ao direito, o princípio da igualdade perante a lei, o princípio do direito adquirido, para citar alguns.
Se este é considerado "maior acordo do mundo...", certamente iremos concorrer para o livro dos recordes com um mais um dos incontáveis assaltos à legitimidade e legalidade constitucionais e democráticas que vêm sendo perpetrados continuamente pelos que juraram a defesa de nossa Carta Magna.
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Edésio Passos (edesiopassos@uol.com.br) é advogado, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Associação Brasileira dos Advogados Brasileiros, assessor técnico do DIAP, consultor jurídico de entidades sindicais de trabalhadores e ex-deputado federal (PT/PR).
Julho, 2001