Comparato: íntegra da proposta de campanha contra descalabro
Brasília, 30/06/2004 - Segue a íntegra da proposta da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, apresentada hoje (30) pelo jurista Fábio Konder Comparato ao presidente nacional da OAB, Roberto Busato:
Objetivos
1. Defesa da república: Impedir a subordinação do bem comum do povo ao interesse particular, bem como a subserviência da nação ao interesse estrangeiro.
2. Defesa da democracia: Instituir uma soberania popular efetiva e não meramente simbólica.
Principais meios de atuação
Quanto ao objetivo republicano
1. Criar um secretariado nacional de acompanhamento da vida pública,para denunciar prontamente as violações do bem comum do povo e do interesse nacional, por parte dos Poderes Públicos da União.
2. Instituir ouvidorias no plano local (Estados e Municípios), para acolher denúncias do povo contra o mau funcionamento dos serviços públicos.
3. Rever a legislação concernente aos meios de comunicação de massa, de modo a evitar que eles sejam utilizados para a defesa de interesses particulares contra o bem comum do povo ou a independência nacional. Em especial, propugnar a criação do chamado "direito de antena" do povo no rádio e na televisão, a imposição a todas as emissoras de rádio e televisão, com base no disposto no art. 221 - I da Constitição Federal, de uma programação diária mínima com conteúdo educativo, cultural, artístico e jornalístico, bem como a ampliação do âmbito de operação das rádios comunitárias.
Quanto ao objetivo democrático
A - Defender uma ampla revisão constitucional, objetivando:
1. Submeter toda e qualquer emenda constitucional ao referendo popular.
2. Suprimir da competência exclusiva do Congresso Nacional o poder de autorizar referendo e convocar plebiscito (art. 49 - XV da Constituição Federal). A convocação de referendo ou plebiscito, nas três esferas da federação, deveria ser feita pela Justiça Eleitoral, mediante iniciativa popular, ou de parlamentares que representem a maioria absoluta da respectiva Casa Legislativa.
3. Precisar que as leis oriundas de iniciativa popular somente poderão ser alteradas ou revogadas mediante iniciativa popular.
4. Tornar obrigatória a participação popular na elaboração do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias, na União e nos Estados. Nos Municípios e no Distrito Federal, essa participação ativa do povo deveria estender-se também ao orçamento anual.
5. Instituir o poder de destituição pelo voto popular de Chefes do Poder Executivo, bem como o poder de dissolução de Câmaras Legislativas, na segunda metade do mandato ou da legislatura, mediante iniciativa popular.
B - Propugnar mudanças legislativas para:
1. Dar legitimidade a associações civis e a fundações, na propositura de ações populares civis, bern como legitimidade a qualquer do povo na propositura de ações de improbidade administrativa, revogando-se a Lei n° 10.628, de 2002, a qual estendeu o privilégio de foro aos réus em tais ações.
2. Criar a ação popular penal contra quaisquer agentes públicos, por crimes contra a Administração Publica e a Administração da Justiça.
Justificativa
A república e a democracia sempre foram realidades estranhas a vida nacional.
Já na primeira metade do século XVII, Frei Vicente do Salvador pôde testemunhar o pouco caso que os colonizadores aqui demonstravam pelo bern comum do povo e a prosperidade do país. Os povoadores, disse ele, "por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pertendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam e: papagaio real pera Portugal, porque tudo querem para lá. E isto não tern sb os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, sb para a desfrutarem e a deixarem destruída". Dal sua inferência: "Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". Ilustrou esse asserto com o episódio de um bispo dominicano, que passou algum tempo entre nós. Toda vez que mandava alguém a cidade para comprar mantimentos, o enviado voltava de mãos abanando. Mas, assim que recorria para tanto a alguma casa particular, seus desejos eram pronta e fartamente satisfeitos. 0 que levou dito bispo a concluir: "verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa" (História do Brasil, livro primeiro, capítulo segundo).
Inútil acrescentar que essa mentalidade doméstica e privatista continua a reinar no país e a alimentar coronelismos, caciquismos e privatismos de toda sorte. Os bens públicos consideram-se livremente apropriáveis pelo que primeiro deles se aposse; disto, a longa história de grilagem de terras devolutas a apenas urn exemplo. Quanto aos serviços públicos, o seu funcionamento em proveito da coletividade sempre foi a última das preocupações dos nossos governantes, de ontem e de hoje ("O que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas", denunciou o mesmo Frei Vicente do Salvador, "é uma piedade"). Hoje, na verdade, o bom funcionamento dos serviços públicos não consiste em fazer com que eles sirvam ao povo, a quem na realidade pertencem (res publica, res populi, advertiam os romanos), mas sim em que eles onerem o mínimo possível as finanças do Estado, organizadas prioritariamente para atender o pontual pagamento dos juros de empréstimos aos capitalistas, nacionais e estrangeiros. Para concluir este triste assunto, o de se lembrar que a ideologia do liberal-capitalismo, largamente difundida nos anos 90, do século passado, patrocinou a liquidação mercantil de grandes empresas estatais, que faziam parte do patrimônio nacional e tinham importância estratégiaca na política de supremacia do bem comum do povo e de independência nacional. Elas foram entregues, na maioria dos casos, a grupos multinacionais.
Quanto à prática democrática, é bem conhecido o juízo desconsolado que dela fez Sérgio Buarque de Holanda:
"A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar a situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos" (Raízes do Brasil, capitulo VI).
Quando essas linhas foram escritas, na década de 30 do século XX, o país ainda não havia conhecido a substituição completa da "aristocracia rural e semifeudal" pela burguesia industrial como classe dominante. Depois disso, o empresariado industrial e o grupo ascendente dos banqueiros mostraram sobejamente que a soberania popular, a independência nacional e a proteção dos direitos humanos, mormente os de natureza econômica e social, representam, para as chamadas elites, meras figuras de retórica constitucional, a serem prontamente afastadas, quando põem em risco a realidade do govern oligárquico.
Ora, sem a instauração de um autêntico regime republicano, será impossível impedir a supremacia tradicional dos interesses particulares sobre o bem comum do povo, ou defender a independência nacional contra o avanço da globalização capitalista. Da mesma forma, sem a instituição de um autêntico regime democrático, com soberania popular efetiva e respeito integral aos direitos humanos, não seremos jamais capazes de extinguir o sistema de irresponsabilidade geral dos governantes, que sempre existiu entre nós.
Em suma, o pressuposto para a solução dos grandes problemas econômicos e sociais do país tem natureza política: e a refundação do Estado brasileiro, com base nos princípios cardeais da república e da democracia.
São Paulo, 28 de junho de 2004.