Blog Brasil do B: Lula e as MPs, 10 anos depois
Brasília, 20/03/2008 - O blog do jornalista Bernardo de La Peña, do jornal O Globo, denominado "Brasil do B", aborda hoje o uso indiscriminado pelo governo das medidas provisórias. Sob o título, "Lula e as MPs, 10 anos depois", o jornalista analisa a carta enviada à OAB pelo então candidato a presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, em julho de 1998:
"Entrou para a série das lendas da política uma frase atribuída ao ex-presidente Fernando Henrique - mas que ele sempre negou ter dito. Seria mais ou menos como "esqueçam o que escrevi". Embora FH tenha desmentido desde o primeiro momento, parece que o tucano mirou no que não viu e acertou onde deveria. Talvez seja um exagero, mas quanto mais conheço a política mais me convenço de que, infelizmente, a máxima deveria ser adotada como um compromisso por todos os que têm perspectivas de chegar ao poder. Em 1998, como candidato, Lula prometeu, numa carta endereçada à OAB, que, se eleito, reduziria e limitaria o número de medidas provisórias. Nesta semana, disse que é impossível governar sem elas.
Em alguma das duas afirmações, Lula mentiu sobre suas intenções ou impressões? Acredito que não. Mas acho que, ao fazer esse discurso hoje, o presidente apenas reforça a necessidade de, antes de subir a rampa do Palácio do Planalto, os candidatos, para lamento geral da nação, devem se despir de muitos de seus compromissos. Não defendo aqui o descumprimento das promessas de campanha. Ao contrário. Mas é isso, fazer menos promessas durante a campanha ou passar mesmo por mentiroso depois de assumir o poder.
Assinada de próprio punho, a carta de Lula entregue ao então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo Castro, continha o compromisso de acabar com o uso indiscriminado de medidas provisórias: "O atual governo (FH) adotou mais MPs do que os Decretos-lei editados pelos governos militares. Limitar-me-ei ao que prescreve a Constituição Federal - para cuja elaboração contribuí - de só editar Medidas Provisórias em situações de excepcionalidade e emergência", garantiu Lula.
Já se vão quase 10 anos, porque a carta foi entregue em julho, mas o meu objetivo não é fazer uma simples crítica a Lula. Gostaria de debater a visão de quem faz oposição e de quem está no governo. Afinal, o que disse Lula na terça-feira em Campo Grande (MS), onde foi lançar obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), definitivamente não é a mesma coisa do que havia prometido fazer na OAB. Veja a reprodução de um trecho da reportagem de Flávio Freire, publicada pelo Globo ontem:
"Em resposta ao movimento do Congresso por mudanças nas regras sobre medidas provisórias, que têm força de lei e trancam a pauta do Legislativo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem que considera "humanamente impossível" governar sem MPs. O petista repetiu o discurso ameaçador usado ano passado, quando tentava aprovar a manutenção da CPMF argumentando que o país não podia abrir mão dos recursos do imposto — o que, viu-se depois, não se confirmou. Em tom mais conciliador, Lula disse ainda que o Congresso deve trabalhar como achar melhor, mas destacou que o tempo necessário para que as coisas aconteçam no país é muitas vezes mais rápido que o da discussão parlamentar.
— Não tem ameaça, e acho que o Congresso tem que trabalhar de uma forma que se sinta bem. A medida provisória, quando foi instituída, na Constituinte de 88, veio porque todos estavam cansados de decreto-lei. Todos sabem, deputados e senadores também, que é humanamente impossível governar sem medidas provisórias — disse ele, que ontem participou da assinatura da ordem de serviço de R$ 89 milhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para obras em Mato Grosso do Sul.
— O tempo e a agilidade que as coisas precisam para acontecer muitas vezes é mais rápido que o tempo da discussão democrática. A idéia da Câmara e do Senado de debater isso (MPs) é porque querem compatibilizar as necessidades do governo e do Congresso.
Nos bastidores, Lula trava uma batalha para que as MPs não percam força de lei, com vigência imediata, o que as tornaria projetos sem prazo para votação".
Veja, a seguir, a íntegra do documento assinado por Lula, como candidato, e que traz os nove compromissos assumidos publicamente por ele em julho de 1998:
"Preliminarmente agradeço a honra que a Ordem dos Advogados do Brasil me conferiu convidando-me a expor diante de seu egrégio Conselho Federal minhas propostas programáticas para o futuro do país, na condição de candidato à Presidência da República pela União do Povo, Muda Brasil. Pelo destacado lugar que a OAB ocupa na institucional idade brasileira e pelo papel histórico que cumpriu na defesa intransigente do Estado democrático de direito, considero, que essa ocasião não se pode confundir com um ato de campanha eleitoral.
Representa, para mim, um momento de diálogo do qual espero poder recolher valiosas contribuições para o futuro do Brasil. Em sua trajetória histórica, a Ordem dos Advogados do Brasil, teve como preocupações centrais a defesa do Estado Democrático de direito, o combate à violência e o respeito irrestrito aos Direitos Humanos. Retóricas à parte, a proteção dos Direitos Humanos no Brasil continua ainda em um estado muito precário.
Represento uma vertente política que considera que a democracia supõe o Estado de Direito, ainda que não se resuma a ele. Não há efetivo respeito e proteção aos Direitos humanos se não se tem condições de implantar também uma democracia econômica e social. Os milhões de irmãos nordestinos que vegetam nas regiões afetadas pela seca, os homens e mulheres excluídos pelo desemprego, fome, miséria e analfabetismo têm seus direitos humanos permanentemente violados. Da mesma forma, os, que
sofrem discriminação por sua etnia, gênero, idade, opção sexual, deficiência física ou mental, constituem uma legião de cidadãos chamados de "segunda classe".
Esses milhões de brasileiros, independentemente da igualdade jurídica que a Constituição lhes confere, sofrem uma real exclusão, encontrando-se de facto desprotegidos pela lei e pelas instituições. Os problemas estruturais da economia brasileira, sumamente agravados pelas políticas econômicas adotadas nos últimos anos, contribuíram para um incremento sem precedentes dessas desigualdades e, em conseqüência, da violência em nosso país.
Nossa consciência moral se sente afrontada quando estudos da maior respeitabilidade mostram, por exemplo, que a causa mortis principal entre jovens é o homicídio ou que a prostituição infantil agravou-se, apesar das reiteradas denúncias nos últimos anos. A violação da lei e o desrespeito aos Direitos Humanos se alimenta da impunidade, da violência institucionalizada em grande parte dos aparatos policiais e da corrupção que mina e enfraquece nossas instituições.
A redução da violência e o respeito aos Direitos Humanos só serão plenos quando formos capazes de construir uma economia sustentada, soberana e solidária. Mas a sociedade não pode ficar apenas esperando que essas metas venham a ser atingidas, o que demandará tempo e um enorme esforço coletivo. É necessário que o Estado tome medidas efetivas para enfrentar emergencial e estruturalmente a onda de violência que golpeia toda a sociedade.
Quero que este encontro seja a oportunidade para assumir com o Conselho Federal da OAB e, através dele, com toda a consciência jurídica do país, um conjunto de compromissos relacionados com o ordenamento jurídico nacional, com o combate à violência e o respeito aos Direitos Humanos, aos quais me subordinarei estritamente caso venha a ser conduzido, pelo voto popular, à primeira magistratura da Nação.
Assumo o compromisso de contribuir para a independência e fortalecimento do Poder Judiciário. Por essa razão, meu governo interromperá toda e qualquer iniciativa para a adoção da Súmula Vinculante, por considerá-la fator de debilitamento e até mesmo de esterilização do Poder Judiciário.
Assumo o compromisso de acabar com o uso indiscriminado de Medidas Provisórias. O atual governo adotou mais MPs do que os Decretos-lei editados pelos governos militares. Limitar-me-ei ao que prescreve a Constituição Federal - para cuja elaboração contribuí - de só editar Medidas Provisórias em situações de excepcional idade e emergência.
Assumo o compromisso de tomar todas as medidas que estiverem ao alcance do Executivo - respeitada escrupulosamente a independência do Judiciário - para tornar a Justiça mais ágil, rápida e accessível ao conjunto dos brasileiros. Multiplicaremos iniciativas legislativas para modernizar nossos códigos e leis e esperamos poder contar com a Ordem dos Advogados do Brasil como um interlocutor privilegiado na definição de nossas propostas.
Assumo o compromisso de propor iniciativas para estabelecer controle externo do Poder Judiciário. A criação de um Conselho Nacional de Justiça permitirá que o Judiciário seja controlado do ponto de vista funcional, financeiro e orçamentário. A adoção desse controle não representará qualquer interferência na atividade jurisdicional. Manterá intacta a autonomia e independência dos juízes.
Assumo o compromisso de estudar, junto com a Ordem dos Advogados do Brasil e outros setores representativos da sociedade civil, as propostas hoje em debate para a criação de uma Corte Constitucional, visando permitir o aperfeiçoamento de nosso sistema democrático.
Assumo o compromisso de que o Executivo fará tudo o que estiver a seu alcance para dotar o Poder Judiciário da infra-estrutura necessária à implantação de uma Justiça perto do povo, ágil e de custo reduzido.
Assumo o compromisso de usar todo o peso do Governo Federal para promover uma reforma radical das FEBEN e de instituições semelhantes, das polícias, do judiciário e do sistema penitenciário que hoje são uma verdadeira linha de produção da criminalidade. Não por acaso, o Brasil tem o maior índice de reincidência criminal no mundo.
Assumo o compromisso de tornar a agenda dos Direitos Humanos, que integra historicamente os programas dos partidos que sustentam minha candidatura, uma política efetiva de governo e não uma peça de propaganda que encobre a impunidade e a manutenção do atual estado de coisas.
Assumo o compromisso, finalmente, de ser um incansável combatente à impunidade, à corrupção, ao clientelismo, chagas que arruinam nossas instituições, desmoralizam nossas leis e lançam o descrédito sobre a democracia.
Quaisquer que sejam as opiniões que os cidadãos brasileiros tenham sobre minhas idéias políticas e propostas de governo, todos sabem que sou um homem de palavra.
Quero afirmar solenemente diante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que o exposto nesta carta, o que afirmei nesse encontro e o que consta em meus documentos programáticos não são meras palavras, mas um compromisso de honra com os senhores e com o Brasil".
Respeitosamente,
Luiz Inácio Lula da Silva