Artigo: Dia Internacional da Mulher
Brasília, 07/03/2008 - O artigo "Dia Internacional da Mulher" é de autoria da secretária-geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cléa Carpi da Rocha:
"O Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, evoca não o glamour habitualmente associado ao feminino, mas algo bem mais profundo, humano e comovente: a luta heróica pela superação de uma condição social injusta e continuada.
Evoca a trágica epopéia de 129 mulheres tecelãs, no ano de 1857, em Nova York. Realizava-se naquela ocasião movimento em prol da redução da jornada de trabalho e de melhoria salarial.
Submetidas a tratamento desumano, aquelas operárias cumpriam jornada diária de 16 horas – e pleiteavam reduzi-la para 10 horas, em condições salariais equivalentes às dos homens.
Eis que o patronato, sentindo-se desafiado, reagiu com fúria: as operárias foram cercadas na fábrica e pereceram queimadas. Heroínas anônimas, tornaram-se marco de uma luta ainda em curso, não obstante os progressos já obtidos.
Hoje, como ontem, o dia é de reflexão – sobre a condição social da mulher e do mundo em que vivemos, neste início de século 21.
Há, sem dúvida, avanços – e outras heroínas surgiram e continuarão a surgir ao longo desse processo. Mas o quadro de desigualdade subsiste, quer em manifestações culturais preconceituosas, quer em legislações que, embora anacrônicas, continuam a viger, tanto em países desenvolvidos como em vias de desenvolvimento.
A Carta Constitutiva das Nações Unidas proclama a igualdade entre homens e mulheres. Por sua vez, a Declaração dos Direitos Humanos consagra o mesmo princípio – o que, infelizmente, não lhe garante vigência.
Em 1975, a ONU, considerando a persistência das desigualdades entre gêneros, instituiu o Ano Internacional da Mulher, cujo ápice foi a I Conferência Internacional sobre a Mulher, e a implementação de um plano de ação com o eixo: igualdade, desenvolvimento e paz.
Igualdade não só no sentido jurídico - exercício de direitos, fixação de responsabilidades -, mas também (e sobretudo) no acesso aos recursos e participação nas decisões econômicas e políticas nos diversos níveis.
Desenvolvimento se traduz em crescimento e melhoria de todos os aspectos da vida humana, aproveitando-se, ao máximo, os recursos materiais, com vistas à construção da paz e ao aperfeiçoamento social, vetores da superação da desigualdades. Posteriormente, em outra conferência, acrescentou-se o eixo: educação, trabalho e saúde. Finalmente, chegou-se a 4a. Conferência, em Beijing.
Marco importante dessa longa e difícil caminhada foi a aprovação da Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação da Mulher.
A Convenção constata que as mulheres seguem sendo objeto de importantes discriminações, que violam princípios de igualdade de direitos e de respeito à dignidade. Reafirma a fé nos direitos humanos, convencida de que “ a máxima participação da mulher em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, o bem-estar do mundo e a causa da paz, relembrado que a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana; dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural do seu país; constitui obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidade da mulher para prestar serviços a seu país “.
Em 1993, quando da II Conferência sobre Direitos Humanos, em Viena, ocorreu, pela primeira vez, o reconhecimento expresso em um documento das Nações Unidas que os direitos humanos da mulher e da menina são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais, e que “a plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, nos níveis nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação sexual são objetivos prioritários da comunidade internacional.”
Consagrou-se ainda que os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas, devendo incluir em sua defesa a promoção de todos os instrumentos relacionados à mulher.
Decorrente da Conferência de Viena foi a instalação de uma Relatoria sobre a violência contra a mulher, e a adoção, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher. Ensejou, também, a criação do cargo de Alto Comissário para Direitos Humanos.
A realidade, no entanto, demonstra que, apesar de todos os avanços, subsistem sistemas de discriminação em todos os níveis, privado e público. O grande desafio para os povos, no tocante às mulheres, é a superação do sistema operante e opressivo que recai sobre os seres humanos não inseridos no princípio da igualdade e do viver em condições de dignidade.
A pergunta que então se faz é: como concretizar os direitos e obrigações recíprocos, se o princípio maior, de que todos são iguais perante a lei, reiterado sempre nas nossas Constituições, é mais formal do que real, mais nominal do que efetivo para a grande maioria do povo brasileiro, sobretudo no que se refere às mulheres e às crianças? É, ainda hoje, o triste retrato do Brasil e dos povos da nossa América Latina e do Terceiro Mundo.
O ensinamento de Konrad Hesse é de que a Constituição não é apenas um pedaço de papel, como quer Lassalle, porquanto existem pressupostos realizáveis que permitem assegurar sua força normativa.
O que nos falta é vontade política para exercitar na plenitude os princípios que consagra, para que se torne efetivamente o sal da terra, propiciando vida digna para todos e ensejando o progresso coletivo. Para tanto, é preciso defendê-la das investidas, cada vez maiores, dos que querem suprimir suas grandes conquistas.
E necessário repensar as políticas públicas, a partir da relação Estado/sociedade civil/setor privado, como bem ensina Ernesto Ottone, pois esse enfoque, a partir da cidadania, é o protagonismo dos atores sociais e, em particular, dos setores em situação de pobreza.
E ainda: Não parece possível obter êxitos duradouros sem uma representação de suas demandas e de sua participação na elaboração das políticas a serem seguidas. Existe suficiente experiência acumulada sobre a enorme influência na obtenção de resultados positivos do nível de protagonismo dos grupos em situação de pobreza.
Os exemplos mais espetaculares estão dados pelo protagonismo feminino (Anais da I Conferência Internacional de Direitos Humanos, Conselho Federal OAB p.295).
Nas palavras do Papa João XXIII, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão de sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos.
Vale mencionar, no que toca às mulheres, a sua mensagem na “Encíclica Paz na Terra”. Quando fala sobre os “Sinais dos Tempos”, aponta três fenômenos que caracterizam a nossa época. Um deles, o fato por demais conhecido do ingresso da mulher na vida pública: mais acentuado talvez em povos de civilização cristã; mais tardio, mas já em escala considerável, em povos de outras tradições e cultura. Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não sofre mais ser tratada como um objeto ou instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com a sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social.
E ao relembrar hoje a luta das valorosas tecelãs mártires, cabe a nós, mulheres e homens, numa afirmação de propósitos, o dever de socializar a consciência do direito a ter direitos e do dever imperioso de dar vozes a essa consciência, sendo veículos de sua concretização, quer atuando nas mais variadas atividades e profissões, quer atuando nas diversas áreas da cultura".