Artigo: Os 12 apóstolos biônicos

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008 às 07:00

Brasília, 24/01/2008 - O artigo "Os 12 apóstolos biônicos" é de autoria do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, e foi publicado na edição de hoje (24) do Correio Braziliense:

"O Senado brasileiro, que já abrigou personagens da estirpe de Rui Barbosa, Afonso Arinos e Gustavo Capanema, tem sido submetido a sucessivos constrangimentos morais, que o depreciam perante a cidadania e o conjunto das instituições republicanas. Nada o expõe mais que a regra anômala dos senadores suplentes. Ela investe no exercício do mandato, na plenitude das prerrogativas parlamentares, alguém que não recebeu um único voto — nem sequer é conhecido do público.

Há presentemente nada menos que 12 senadores suplentes em atividade. São os 12 apóstolos biônicos, protagonistas de um paradoxo incontornável: a representação popular sem povo. O episódio presente, que decorre da nomeação do senador Edison Lobão (PMDB-MA) para o Ministério de Minas e Energia, não difere na essência dos 11 casos anteriores. Seu suplente, Edison Lobão Filho (DEM-MA), assume sem a unção das urnas. Viola o fundamento básico da democracia, que é o do voto.

A vaga, nos termos da lei, abre-se para o suplente de senador tanto em caráter provisório como definitivo. Pode-se abrir por cassação do titular (caso de Luiz Estevão há alguns anos), por renúncia (caso recente de Joaquim Roriz, sucedido por Gim Argelo), por morte (caso do senador Antonio Carlos Magalhães, sucedido pelo filho, Antonio Carlos Magalhães Filho), ou por nomeação para cargo no Executivo (caso de Edison Lobão).

Em qualquer dessas hipóteses — morte, doença, renúncia ou cassação —, assume o primeiro suplente; no impedimento desse, assume o segundo suplente. Somente se ambos estiverem impedidos — ou seja, em última hipótese —, convoca-se nova eleição, não importa o tempo transcorrido do mandato.

O que temos, em regra, é um convite ao engodo eleitoral, já que o eleitor, ao escolher o senador de sua preferência, em eleição majoritária e disputadíssima, nem desconfia de quem seja o seu suplente. A maioria nem sabe que existe um — muito menos dois, e menos ainda quem são.

Com a regra da suplência, torna-se habitual a eleição de um senador e a posse de outro, o que constitui flagrante violação da vontade soberana das urnas. Assume, nessa hipótese, um senador clandestino — tão biônico quanto aqueles inventados pelo Pacote de Abril de 1977, da ditadura militar, de triste memória.

A suplência, nesses termos, coleciona casos pitorescos, quase folclóricos, como o do senador que, não confiando em nenhum correligionário, escolheu para suplente o pedreiro que reformava sua casa. Morreu logo no início do mandato e acabou sucedido por ele. Outro deixou de ser nomeado para cargo no Executivo pela prosaica circunstância de que seus suplentes estavam na cadeia.

Há casos ainda piores, como o do suplente financiador da campanha, que, por essa via, apossa-se do mandato. Na base de tudo, há uma grave distorção do sistema político brasileiro, que desobriga o titular de mandato parlamentar de exercê-lo. Pode licenciar-se e ceder a vaga ao suplente, o que é mais habitual do que se imagina. Na Câmara dos Deputados, a lei é mais sensata. Assume, na vacância, permanente ou provisória, o imediatamente mais votado entre os que ficaram de fora da cota de cadeiras do partido. Privilegia-se o voto. No Senado, não.

O beneficiado é alguém que o titular ou a cúpula partidária escolheu para sua suplência. Há numerosos casos em que o suplente é um parente — filho, irmão ou esposa; outros em que é o financiador da campanha, que se reveza com o financiado no exercício do mandato, cuidando diretamente de seus interesses privados junto ao Estado. Em qualquer das hipóteses, o povo está ausente.

Há, é verdade, casos em que o suplente se revela pessoa de valor. Mas, nesse caso, não precisaria desse recurso. Poderia credenciar-se pelo voto à legítima titularidade.

A natureza espúria do processo produz o que temos visto: um desgaste cada vez maior da política perante a sociedade, o que resulta em perigoso estímulo a aventuras autoritárias. Há iniciativas tópicas para corrigir essas anomalias. Mas submetem-se ao paradoxo de ser votadas pelos que delas se beneficiam.

E o resultado é que nada acontece. Somente uma reforma, ampla e com efetiva participação da sociedade, pode corrigir essas e outras aberrações de nosso sistema político, devolvendo-lhe a credibilidade. Sem ela, nada feito: jamais superaremos as contradições e injustiças que nos aprisionam ao Terceiro Mundo".