Artigo: Um homem de bem e coragem

segunda-feira, 28 de agosto de 2006 às 11:07

Brasília, 28/08/2006 - O artigo "Um homem de bem e coragem" é de autoria do vice-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Aristoteles Atheniense:

"O Brasil perdeu a voz mais autorizada a promover o nosso reencontro com os valores éticos que, a cada dia, mais se diluem, absorvidos pela cupidez desmensurada que, como praga daninha, se alastra e toma conta das instituições.

Morreu Dom Luciano Mendes de Almeida.

Deixou-nos a sua fórmula mágica do amor: fazer o bem e encontrar no exercício da caridade a alegria de viver.

Em seu último artigo, publicado na sexta-feira passada, preocupou-se em dirigir uma derradeira palavra de exortação aos jovens: “que precisam assumir sua atuação na sociedade, oferecendo a contribuição do idealismo e a riqueza da esperança. O importante são os valores com os quais podem fecundar, dinamizar a sociedade. No mundo de hoje, com o recrudescimento da injustiça e da violência, urge superar essa situação caótica e demonstrar que um outro mundo é possível” (“Folha de S. Paulo”, 26/8/2006).

Uma vida dedicada a fazer o bem, sem ver a quem, revelando a beleza do amor gratuito que não buscava vantagens e compensações, que encontrava a alegria em auxiliar o próximo. Que depositava tudo que era no mínimo que fazia, e, como Ghandi, entendia que uma civilização é julgada pelo tratamento que dispensa às minorias.

Uma palavra permanente de coragem, que pontificou à época do regime militar, quando exercia a Secretaria Geral da CNBB, conseguindo manter o seu espírito conciliador, sem deixar de ser “um moderado no discurso e radical na ação”.

Um homem oriundo de família de grandes recursos, marcado pelo desprendimento, que fazia de si a imagem de seus desejos, convencido de que sem um encontro consigo mesmo nenhum homem realizará o seu encontro com Deus.

Como bispo auxiliar de São Paulo, organizou centenas de abrigos para menores abandonados e era visto nas madrugadas, recolhendo crianças nas calçadas, a quem chegou a ceder o próprio leito, numa demonstração rara e magnífica de solidariedade cristã.

Assim como Dom Helder Câmara, entendia que “ninguém e tão pobre que não possa ajudar; ninguém é tão rico que não precise de ajuda”.

Um combatente indormido às injustiças sociais. A ele nos aliamos, na OAB, ao lado de Sobral Pinto, Tancredo Neves e Ulisses Guimarães, na luta pelas “Diretas Já”. Estávamos conscientes de que o Brasil ainda recobraria o Estado de Direito, por maiores que fossem os riscos com que os glutões do mandonismo procuravam nos intimidar.

Aprendi com Dom Luciano que o homem é dirigido pela razão e não é obrigado a obedecer pelo temor.

Há três semanas passadas, fui visitar esse abnegado jesuíta, em seu modesto apartamento no Hospital das Clinicas, em São Paulo. Atendido por um seu irmão, fiquei a contemplá-lo enquanto dormia. Recusei a oferta que me fizeram de despertá-lo. Algo me dizia que aquele seria o nosso último encontro.

Limitei-me a pedir a Deus que amenizasse o seu sofrimento, que não lhe faltasse no estado terminal em que se achava. Agora, fiquei sabendo de sua partida e convenci-me de que a morte é um passaporte para a vida.

Recordei-me dos inúmeros encontros que mantivemos, quase sempre em breves conversas em aeroportos. Acalentava a vontade de recebê-lo para um jantar em minha casa, que foi sempre adiado, embora, recebendo dele a promessa de que atenderia ao meu convite, com satisfação.

Falávamos dos problemas que, ainda hoje, afligem a Nação e das possibilidades de serem restaurados os valores morais que ele sempre defendeu, com invejável denodo.

Havia de sua parte uma palavra de alento, própria dos homens de fé, para quem a esperança significa aguardar pelo que ninguém mais espera.

A morte não surpreende o sábio, ele está sempre pronto para partir. Pois, conforme lembrou Guimarães Rosa, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: “a gente morre para provar que viveu”.

Dom Luciano nos deixou o exemplo de que viveu – e bem –, ainda que a sua ida importe numa incontida saudade."