Família de vítima da bomba na OAB ganha indenização

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006 às 09:25

Brasília, 17/02/2006 - Quase um ano depois de rejeitar por unanimidade o pedido de indenização da família de Lyda Monteiro da Silva, vítima de uma bomba em 1980 na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio, a Comissão de Mortos e Desaparecidos do governo federal reconsiderou ontem a decisão e aprovou a indenização. O Estado, agora, reconhece a culpa pela morte da secretária e a considera uma vítima da ditadura.

Em março de 2005, a comissão indeferiu o pedido de Luiz Felippe Monteiro, filho de Lyda, por considerar que não havia comprovação do envolvimento dela, que trabalhava na OAB, em atividades politicas. Nesta quinta-feira a relatora do caso, a procuradora Maria Eliane Menezes de Faria, afirmou em seu voto que neste reexame foram levados em conta novos argumentos apresentados pelos familiares, inclusive o ambiente político em que ocorreu a morte de Lyda, “quando o país estava sob controle ditatorial, quando atos e atentados eram praticados no negrume desse ambiente carregado de ameaças e ações”.

Ela disse que a OAB, na época, assumiu papel político. “Nesse contexto, é inevitável concluir que Lyda Monteiro, ao exercer suas atividades profissionais, praticava atividades políticas”. A família terá direito a uma reparação que varia de R$ 100 mil a R$ 150 mil, mas como já recebe uma indenização do governo, o que já foi pago até hoje será descontado do valor a ser desembolsado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos.

Ato contra a democracia

Um dos mais traumáticos episódios da abertura do regime militar (1964-85), a explosão da bomba na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro aconteceu no dia 27 de agosto de 1980. A autoria do atentado foi atribuída a grupos de direita contrários à redemocratização, mas até hoje não se chegou aos culpados. O único indiciado no inquérito, Ronald James Watters, foi absolvido por falta de provas. Só no início de 2000, com base em depoimento da servente aposentada da OAB Dilza Fulgêncio, a Polícia Federal conseguiu concluir o retrato-falado do rapaz que deixou a carta-bomba na sede da entidade.

Naquele dia, chegou à sede da OAB uma carta endereçada ao então presidente da entidade, Eduardo Seabra Fagundes. A carta com explosivos foi aberta pela chefe da secretaria da entidade, Lyda Monteiro da Silva. A explosão causou tremor no andar inteiro do edifício e Lyda, de 59 anos, morreu a caminho do hospital. Os restos da mesa onde a carta foi aberta estão no Museu Histórico da OAB, em Brasília.

O acidente ocorreu no momento em que a OAB-SP e o presidente nacional da entidade faziam uma campanha pública para identificar agentes e ex-agentes dos serviços de segurança suspeitos de torturar o jurista Dalmo Dallari, seqüestrado em julho do mesmo ano, em São Paulo.

O país vivia um momento crucial da abertura política. A anistia decretada pelo presidente João Figueiredo completava um ano e o país se preparava para a primeira eleição direta a governador depois do AI-5, em 1982. Cerca de seis mil pessoas foram ao enterro de Lyda, que se tornou palco de uma manifestação política. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, que ocupava interinamente a presidência nacional da OAB no dia do atentado, lembrou do episódio quando a explosão completou 25 anos:

- A sociedade civil tomou mais conhecimento, pôde se mobilizar mais e ver que os atentados não eram direcionados só aos que tinham optado pela resistência armada à ditadura, mas até a entidades como a OAB. Ninguém mais tinha segurança. (Evandro Éboli, do jornal O Globo)

Voto da ex-Procuradora dos Direitos do Cidadão, da Procuradoria-Geral da República, membro da Comissão de Mortos e Desaparecidos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos, Maria Eliane no caso dona Lyda Monteiro:

Comissão Especial Lei 9.140/95 – Desaparecidos Políticos

Processo: 101/04 - Pedido de Reconsideração
Interessado: Luiz Felippe Monteiro Dias
Assunto: Lyda Monteiro da Silva

Cuida-se de pedido de reconsideração formulado por Luiz Felippe Monteiro Dias, filho de Lyda Monteiro da Silva que teve o pedido de indenização apreciado por esta Comissão, em 03/03/2005. Na ocasião, à unanimidade, o pedido foi indeferido em razão de não haver comprovação acerca da participação da falecida em atividades políticas no período mencionado na lei.

O pedido de reconsideração feito pelo interessado é tempestivo e atende os demais requisitos de admissibilidade, conforme a legislação de suporte .

É dever legal da administração rever seus próprios atos e, se for o caso, corrigir, até mesmo de ofício, suas eventuais imperfeições. Assim o foi, bem a propósito, no precedente caso Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel).

O reexame deste caso concreto exige trânsito por antecedentes históricos, que justamente por isso transcendem os estreitos limites de um processo administrativo de rotina. Este não é, efetivamente, um processo administrativo comum. Para assim concluir, como bem o disse o advogado Doutor João Luiz Duboc Pinaud, Presidente dessa Egrégia Comissão quando nela ingressou o pedido inicial (folhas 2-3), é só examinar o contexto histórico da época que ocorreu a morte da dona Lyda (sic, folha 524). Assim, para essa Egrégia Comissão exercer seu poder revisional, neste caso concreto, é inevitável trafegar pela História – ainda recente - do país e da Ordem dos Advogados do Brasil.

Porque recente, é ainda fácil relembrar o ambiente político dos anos setenta e oitenta do século passado, quando todos - Estado e Governo, sociedade política e sociedade civil - estavam sob controle ditatorial; quando atos e atentados terroristas eram praticados no negrume desse ambiente carregado de ameaças e ações, omissivas ou comissivas, mas sempre combinadas e articuladas em torno do mesmo propósito ditatorial e antidemocrático.

Nesse ambiente de restrições às liberdades públicas e aos direitos fundamentais, com proscrição de partidos políticos e limitações impostas aos dois únicos permitidos, entes da sociedade civil como a Associação Brasileira de Imprensa – ABI e a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB assumiram papéis políticos para além de suas estritas atribuições legais e estatutárias, preenchendo com democracia as gretas e frestas pacientemente abertas na represa ditatorial, contribuindo decisivamente para sua derrocada e preparando o terreno para a retomada democrática, iniciada no final dos anos setenta com a anistia e concluída no final dos anos oitenta com a Assembléia Nacional Constituinte.

À Ordem dos Advogados do Brasil incumbia – e incumbe ainda – lutar pelo aperfeiçoamento das instituições jurídicas e democráticas . Nesse ambiente político adverso, essa luta era, inegavelmente – e inevitavelmente – uma atividade política. Não há como negar, nesse âmbito histórico, a natureza de atividade política às iniciativas da Ordem (ver folhas 17-24, 43-73, 287, 294-298, 300-303, 369-379, 407, 422-447 e 491-501).

Obstruídos os canais de participação política próprios de uma democracia e de um Estado Democrático de Direito, a Ordem dos Advogados do Brasil, alargando em muito os limites formais de sua natureza jurídica stricto sensu – autarquia especial - tornou-se verdadeiro agente político de vanguarda da sociedade civil, executando ações políticas que confrontavam o Estado e o Governo ditatoriais (folhas 17-24).

Esses fatos históricos não podem ser desconhecidos e ignorados pela Administração, nela incluída essa Egrégia Comissão, exatamente porque são história e prescindem de prova formal de qualquer natureza (documental, testemunhal ou pericial), tornando inoperante para este caso o art. 7º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995. Aliás, é conveniente relembrar que sem essas ações políticas da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB e de outros agentes da sociedade civil - Associação Brasileira de Imprensa – ABI, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, entidade sindicais e estudantis, por exemplo (folhas 263-275 e 451) – é certo que a restauração democrática não teria ocorrido como e quando ocorreu. A presente geração de libertos é devedora da geração de libertadores imediatamente anterior, na qual despontam e se elevam as figuras imortais de Raymundo Faoro e Barbosa Lima Sobrinho.

Nesse contexto – final dos anos setenta do século passado - é inevitável concluir que Lyda Monteiro da Silva, então Chefe da Secretaria do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Secretária da sua Comissão de Direitos Humanos (folha 29), ao exercer suas atividades profissionais praticava atividades políticas, na direção e sentido indicados pelo atual legislador ordinário . Dela não se poderia exigir que exercesse a mesmíssimas atividades exercidas por seu superior, o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, mas ao secretariá-lo não apenas o auxiliava nessas atividades políticas, e sim com ele comungava lealmente princípios e ideais, contribuindo para a luta em favor da democracia e das instituições jurídicas. Nesse contexto histórico e jurídico secretariar a Ordem dos Advogados do Brasil era exercer uma atividade política, no sentido que lhe concede o atual texto legal aplicável a este caso. Nesse ponto a situação de Dona Lyda assemelha-se em tudo àquela vivida no Chile pela secretária de Orlando Letelier, cuja morte foi indenizada pelo governo Chileno sob pressão do Governo Americano.

A Administração Pública – nela incluída essa Egrégia Comissão - pauta-se pelo princípio da razoabilidade e esse colegiado, por sua própria natureza jurídica, resultante da sua lei de criação , tornará efetivo e operacional esse princípio potenciando-o e fazendo nele incidir os princípios universais reitores dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. Essa Egrégia Comissão, por tudo isso, tem o dever legal de operar o Direito Administrativo sob os princípios e regras universais dos Direitos Humanos.

Para isso – e por isso – deve essa Egrégia Comissão adotar uma concepção sistêmica do Direito, em que esses princípios universais potenciem, transformem e tornem operacional, para este caso concreto, uma regra de Direito Administrativo de aparência estrita. Não pode fazer uma interpretação naïf – como diria Canotilho – de uma norma de Direito Administrativo cujo propósito e alcance é tão elevado. Como já o fez no precedente caso ZUZU ANGEL, há de seguir a direção estimativa indicada pelo legislador ordinário contemporâneo e pelo contexto histórico do caso concreto. Essa Comissão – como Lyda - é ela e sua circunstância, como diria Ortega y Gasset. A grandeza e transcendência de ambas estava e está na circunstância que lhes ofereceu e oferece o destino, permitindo ir além de limites aparentes e formais, para assim bem cumprir suas atribuições. Assim como Lyda transcendia os limites de seu cargo de Chefe da Secretaria Geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB para melhor exercê-lo, em favor da instituição - a que fielmente servia - e do país, essa Egrégia Comissão também transcende limites formais e aparentes, em favor da realização concreta do Estado Democrático de Direito e de seus princípios – inclusive e principalmente aqueles relacionados aos Direitos Humanos - consagrados nos versículos iniciais da Constituição da República, que ali estão inscritos graças às lutas e aos sacrifícios de entidades e pessoas como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Lyda Monteiro da Silva, que foi uma das vítimas mais patentes da ditadura militar, pois com aquela explosão da bomba, ela foi uma pessoa imolada – e não só ela, a OAB também foi lesionada – pela repressão que o Estado fazia na época (sic). O próprio Estado já reconheceu isso, ao afirmar em texto de lei que Lyda Monteiro da Silva faleceu, vítima direta de atentado, ocorrido no dia 27 de agosto de 1980, no Estado do Rio de Janeiro, promovido por motivações políticas , o que torna desnecessário e irrelevante qualquer debate em torno de provas do fato (folhas 503-507). No dizer do Relator dessa matéria na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, o Senador Teotônio Vilela Filho, o atentado que vitimou Lyda Monteiro da Silva tem significação que, em termos de desafio às instituições nacionais, nunca foi posta em dúvida (sic, folha 14). Dessa lei, ato de vontade do Estado, por iniciativa presidencial e chancela congressual, resulta inevitável a conclusão de que esse mesmo Estado, em outro momento histórico, foi responsável objetivo pelo ocorrido com Lyda Monteiro da Silva. É certo que a teoria da responsabilidade objetiva do Estado só recentemente foi aceita e consagrada nos textos legais, sendo isso um dos muitos e bons frutos da restauração do Estado Democrático de Direito, para a qual muito contribuiu a imolação de Lyda Monteiro da Silva. É igualmente certo que só no atual ambiente de liberdade e democracia o Governo e o Estado poderiam assim decidir e reconhecer expressamente tal responsabilidade objetiva. Tal reconhecimento, por lei, dessa responsabilidade – afinal, se não fosse o Estado responsável não teria porque conceder pensão vitalícia ao interessado e deixar tão claramente indicado que outra indenização era devida, como ver-se-á mais adiante – tem força bastante e suficiente para incluir este caso concreto ao abrigo da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, estendendo o alcance da parte final da alínea b do inciso I do seu art. 4º, seguindo a direção estimativa assim indicada pelo legislador ordinário.

Convém notar – e isso é relevante - que esse reconhecimento por lei ordinária é posterior ao pedido inicial que deu origem a este processo administrativo, protocolado sete meses antes. Por isso mesmo cuidaram o Congresso Nacional e a Presidência da República de, nessa mesma lei, estipular que as importâncias pagas [ao interessado, a título de pensão especial, mensal e vitalícia] serão deduzidas de qualquer indenização que a União venha a desembolsar em razão do acontecimento . Em verdade, ao assim decidir o Congresso Nacional e a Presidência da República seguiram a direção estimativa já indicada sete anos antes, na Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, criadora e reitora dessa Egrégia Comissão. Em rigor, pode-se afirmar, sem abandonar essa direção estimativa, que a Presidência da República e o Congresso Nacional tinham consciência e até mesmo certeza do reconhecimento do direito à indenização nos termos dessa lei, não o fazendo diretamente em prestígio aos atributos dessa Egrégia Comissão, criada com tão elevados propósitos. A trajetória deste pedido é contemporânea e paralela à da Lei nº 10.705, de 21 de julho de 2003, tramitando ambas concomitantemente, em seus respectivos entes estatais. Em rigor, Executivo e Legislativo concertaram uma simples e provisória antecipação da indenização que seria com certeza deferida ao interessado mais adiante.

Como nada disso foi considerado na decisão anterior dessa Egrégia Comissão (folhas 502-510), este pedido de reconsideração enseja o bom exercício do poder revisional da Administração Pública neste caso concreto, reiterando-se que, em se tratando de um órgão colegiado que opera e efetiva princípios e regras universais de Direitos Humanos, não é viável uma hermenêutica de restrições ou uma interpretação da lei específica aplicável.

Por tais fundamentos apresento aos meus pares esse novo entendimento reconsiderando meu próprio voto anterior, que foi amparado no substancioso e jurídico posicionamento do Dr. Belisário dos Santos Júnior, convencida pelos novos argumentos trazidos aos autos, para deferir o pedido de indenização, admitindo expressamente a dedução do que já foi pago ao interessado a título de pensão especial, mensal e vitalícia, tudo nos termos das Leis nºs 9.140 e 10.705.

Maria Eliane Menezes de Farias Comissão Especial Lei 9.140/95 Em 16 de fevereiro de 2006