PGR dá parecer a favor de Adin contra vigência da verticalização

terça-feira, 21 de março de 2006 às 12:34

Brasília, 21/03/2006 - O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) parecer em favor à Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3685, que questiona a Emenda Constitucional nº 52/06. Por meio da emenda, o Congresso Nacional extinguiu a verticalização das coligações partidárias, tornando a norma válida já para as eleições deste ano. Proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a Adin 3685 sustenta que a medida viola o princípio da anualidade, estabelecido no artigo 16 da Constituição Federal - que afirma que qualquer alteração à norma eleitoral só pode ser feita em até um ano antes da eleição. O procurador-geral concordou com a violação levantada pela OAB e pede, em seu parecer, que o STF declare a inconstitucionalidade do artigo 2º da emenda 52/06, que garante a aplicação da regra para as eleições deste ano.

O artigo 1º da Emenda Constitucional nº 52, aprovada este ano pelo Congresso, diz que os partidos terão autonomia para escolher suas coligações eleitorais, sem vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal. Já o artigo 2º determina que a nova regra entre em vigor imediatamente - ou seja, a norma estaria valendo já para as eleições de 2006. Na ação, a OAB afirma que a emenda é inconstitucional porque não respeita o artigo nº 16 da Constituição. O artigo determina que as leis alterando o processo eleitoral não podem ser aplicadas às eleições que ocorram até um ano da data da vigência da nova lei.

No parecer, o procurador-geral afirma que o artigo nº 16 foi criado para impedir "casuísmos" capazes de alterar o resultado das eleições. "A prevenção dos casuísmos se dá em termos amplos, precavendo-se o processo eleitoral de qualquer espécie de alteração extemporânea, em detrimento da segurança jurídica exigida pela necessária legitimação do pleito", diz ele.

"Somente com a garantia de preservação das diretrizes do processo eleitoral, ao menos nos instantes próximos ao da realização do pleito, alcançar-se-á um mínimo grau de estabilidade institucional". Por isso, Antonio Fernando sustenta que o fim da verticalização não pode ser aplicado para as eleições deste ano.

Além disso, Antonio Fernando lembra que, em outros julgamentos, o Supremo reconheceu a validade do princípio da segurança jurídica e da anterioridade - garantidos pelo artigo nº 16. O parecer do procurador-geral será analisado pela ministra Ellen Gracie, relatora da matéria no STF. A seguir, a íntegra do parecer da Procuradoria-Geral da República:

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Nº 1246 -PGR-AF
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 3685 – 8/600
REQUERENTE : Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
REQUERIDO : Congresso Nacional
RELATORA : Exma. Sra. Ministra Ellen Gracie

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RITO DO ART. 12 DA LEI 9.868/99. EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 52, DE 8 DE MARÇO DE 2006, EM QUE SE aSSEGURA AOS PARTIDOS POLÍTICOS A PLENA AUTONOMIA PARA ADOTAR O REGIME DE SUAS COLIGAÇÕES ELEITORAIS. PREVISÃO DE IMEDIATA APLICAÇÃO. CONFRONTO COM O ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO. PROCEDIMENTO COMO ITEM INTEGRANTE DA EVOLUÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO. LEGITIMAÇÃO DAS DECISÕES POLÍTICAS POR INTERMÉDIO DO pROCEDIMENTO. ALTERAÇÕES DOS CÓDIGOS LEGAIS DEVEM SE PAUTAR POR REGRAS PREVIAMENTE DELINEADAS. ARTIGO 16 DA LEI FUNDAMENTAL COMO EXPRESSÃO MÁXIMA DESSE DISCURSO. ABALO DO REGIME DEMOCRÁTICO EM FACE DO ENFRAQUECIMENTO JURÍDICOS DAS INSTITUIÇÕES. CONFLITO QUE SE RESOLVE EM FAVOR DO PRECEITO MARCADO PELO ARTIGO 16. DISPOSIÇÃO QUE INOVA O PROCESSO ELEITORAL, REARRUMANDO AS FORMATAÇÕES PELAS QUAIS SE EXPRESSARÃO AS TENDÊNCIAS E OS AGENTES PARTICIPANTES DO PLEITO, QUE SE AVIZINHA.SEGURANÇA JURÍDICA A SER PRESTIGIADA. PLAUSIBILIDADE DO PEDIDO DEMONSTRADA. PATENTE RISCO DE INFLAMAÇÃO E DÚVIDA SOCIAL. PARECER PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em impugnação ao art. 2º da Emenda Constitucional n.º 52, de 8
de março de 2006.

2. Do diploma consta a seguinte redação:

“Art. 1º O § 1º do art. 17 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
‘Art. 17. ...............................................

§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.

.........................................................’ (NR)
Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002.”

3. A determinação de se aplicar, de imediato, as previsões ditadas pela Emenda, na compreensão do requerente, “…é inconstitucional por atentar contra o artigo 16 da Lei Fundamental, combinado com o artigo 60, § 4º, IV, também da Constituição Federal” – fls. 2.

4. É que, em aparente conflito, a previsão do art. 16 da Constituição da República é limitante, tolhendo a eficácia de toda e qualquer norma que tenha por vocação alterar o processo eleitoral às voltas do início do pleito. A inovadora disposição normativa não será aplicada – é esse o mandamento do art. 16 – à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência.

5. Do suposto enfrentamento dos comandos constitucionais, na argumentação do requerente, há de se erguer com primazia a dicção do art. 16 da CRF/88. Por ostentar matizes evidentes no princípio da segurança jurídica, a norma veiculada no referido art. 16 ganharia assento no conjunto apartado de cláusulas imodificáveis da Lei Maior. A alteração vinda com a Emenda deveria guardar respeitosa atenção ao núcleo essencial da Constituição (art. 60, § 4º, da CRF/88), deixando de lado sua pretensão de ser
imediatamente aplicada.

6. Dessa construção vem o pedido final de declaração de inconstitucionalidade da Emenda, ao menos de seu art. 2º. Sucessivamente, há pedido de interpretação conforme a Constituição, com decisão no sentido de se afastar exegese que admita a aplicação das regras vindas com a EC n.º 52 ao pleito eleitoral do ano de 2006.

7. Em vista da relevância da matéria, o Eminente Ministro GILMAR MENDES, em substituição à V. Exa (RISTF, art. 38), adotou o rito do art. 12 da Lei 9.868/99.

8. A requerente fez chegar aos autos parecer elaborado por Fábio Konder Comparato em subsídio aos argumentos da peça inicial – fls. 27-32.

9. Em apoio à norma impugnada, vieram as informações prestadas pelo Presidente do Congresso Nacional – fls. 35-38 – e a manifestação do Advogado-Geral da União – fls. 40-72.

10. Os autos chegam à Procuradoria-Geral da República para manifestação.

11. Questão que surge na hipótese diz sobre a convivência entre previsão normativa pré-existente na Constituição e inovação vinda por emenda, quando se instale aparente contradição entre seus mandamentos. A leitura passará longe dos processos usuais de interpretação, não bastando a máxima da especialidade ou o critério temporal para se ter a revogação de dispositivos incompatíveis.

12. O procedimento de alteração constitucional tem a ele agregado as limitações ditas materiais ao poder de reforma, previstas no art. 60, § 4º, da Lei Maior. Ao preservar seu cerne, a Constituição se precaveu da ocorrência descuidada de eventual “descontinuidade material”1, ou seja, de seu desmoronamento, provocado por seu próprio processo de revigoramento. Ao poder de reforma Constitucional se colocam limitações claras, sem as quais se poria em perigo a Constituição em vigor.

13. Nessa linha, há campo de normas na Constituição da República que não se sujeita a reforma, a emenda, disso evoluindo a idéia, amplamente aceita contemporaneamente, de normas constitucionais ditas “inconstitucionais”.

14. A previsão ganhou espaço na prática do controle de constitucionalidade, mesmo em nossa realidade, como ilustrou, com pormenores de sua dogmática e de sua evolução, o Eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE em palestra de encerramento do I Congresso Brasileiro de Direito do Estado, em Salvador, Bahia.

15. Pois o problema proposto na ação em exame está em se identificar, ou não, o preceito do art. 16 da Constituição da República nesse núcleo duro.

16. Adianto que me parece acertada a imersão dessa norma numa proteção realmente destacada.

17. Digo-o com apoio na compreensão funcional do sistema jurídico, dentro da qual o procedimento tem, sim, grande relevância para a legitimidade das decisões políticas. Não há espaço para aprofundamentos dogmáticos, apenas para a ilustração dessa verve, que anima os pensamentos
democráticos contemporâneos. Nesse ângulo sociológico, tome-se como premissa a inviabilidade concreta de alcançar-se a unanimidade de posicionamentos em vista da complexidade do mundo. O que se busca no sistema político moderno, nos seus últimos estágios de sua evolução, é a legitimidade das decisões, que hão de ser aceitas, ainda que não sejam compartilhadas por todos, pelo fato de terem sido tomadas dentro de um procedimento estabelecido de antemão. É o procedimento formal, per se, o lastro de legitimação das decisões, dentre as quais as alterações dos códigos legais3, no que se pode dizer, sem preocupação, ostentar também visceral importância para a vivacidade do estado democrático.

18. Noutras palavras, mas inspirada nessa mesma construção, escreve Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha :

“…considerando que os antagonismos brotam em todos os aspectos da vida social, e diante da impossibilidade de qualquer forma de democracia direta a dificultar a concordância de opiniões e ameaçar a estabilidade das sociedades democráticas, criou-se o consenso básico entre os cidadãos. Segundo Luhmann, no sistema político moderno, o consenso é estabelecido não sobre a decisão em si, mas em relação às premissas sobre as quais se apoia. É o procedimento que torna legítima a decisão uma vez ser impossível a avaliação individualizada de cada uma para obter-se sua aceitação. A complexidade da sociedade moderna traduz-se na ‘generalização do reconhecimento das decisões.’ A legitimidade não se relaciona à crença individual na autenticidade das decisões, mas a um processo de institucionalização que se opera no âmbito da sociedade. Somente levando-se em conta esse fato pode-se entender como se dá a aceitação de uma decisão. (…) O Estado democrático de direito tem no processo eleitoral, por exemplo, um importante mecanismo de legitimação. Ele busca definir uma decisão, uma vez que todo o esforço feito para se chegar a um acordo tem sua razão de ser na tomada de decisão política. No processo eleitoral, instaura-se o debate público em que todos os cidadãos participam, consoante as regras que limitam e organizam a forma como as divergências serão propostas e as expectativas expressas. O seu resultado tem o caráter de um consenso generalizado e estabilizador do sistema político.” (ênfases acrescidas.)

19. A força dessa idéia é muito vigorosa: a aceitação pelos cidadãos de determinados agentes políticos, e com eles, de todas as decisões políticas tomadas em seu favor, tem lastro basicamente no procedimento, ou seja, no caso, no processo eleitoral. O seu resultado é assimilado pela
sociedade em vista da seleção que o apoia. As linhas que seguem a partir dessa percepção para efeito da consolidação do regime democrático são pesadas.

20. Não se corre nenhum risco de cair em leviandade ao se conferir à regra do art. 16 da Constituição da República um relevante papel no processo eleitoral, o que, como dito, em última análise representa afirmar que a legitimidade do processo de escolha, de consolidação da democracia brasileira, passa por detida atenção de seu comando normativo. Como regra de procedimento, confere publicidade às diretrizes do processo político,
circunstância valiosa à sua racionalização e à plena aceitação dos eleitos pelo povo. Mesma visão, reforçada, está em Konrad Hesse:

“Democracia é, na estrutura constitucional da Lei Fundamental, forma de racionalização do processo político. Ela cria racionalidade pelo seu próprio procedimento de formação da vontade política e pela publicidade
desse procedimento. O procedimento democrático de formação da vontade política conduz a uma moldagem das direções de vontade não-moldadas. Ele possibilita decisão segundo regras firmes. Ele fundamenta responsabilidade e cria possibilidades de realizar essa responsabilidade. Ele não deixa o procedimento de formação da vontade política na obscuridade dos pactos ou decisões de detentores do poder incontroláveis, senão o põe fundamentalmente
na luz do público.” (destaque somado.)

21. O procedimento será aceito como lastro das escolhas políticas – dos cidadãos e, logo em seguida, dos agentes políticos selecionados – desde que atendidos seus critérios, no caso, constitucionais. É preciso considerar a relevância da previsão da anterioridade para mudanças nas regras eleitorais no reconhecimento social dos resultados dos pleitos. A maximização da democracia, ainda em estado de consolidação em nosso país, guarda alicerces nesse campo, pois sem a observância de limitação da eficácia de novos diplomas em matéria de processo eleitoral, nos termos em que se propõe o art. 2º da EC n.º 52, graves conseqüências sobre a idéia de segurança jurídica hão de serem registradas em breve, e em âmbito muito extenso. O debate acerca da importância do procedimento para alterações de códigos legais não é hermético; é realista e equilibrado.

22. Abalo na seriedade do processo eleitoral comprometerá todas as decisões políticas subseqüentes, passíveis que estarão de questionamentos em sua intrínseca legitimidade. Não é sem razão o que consta do rol explícito do art. 60, § 4º, da Constituição da República: a preservação, como tema cristalizado, do voto direto, secreto, universal e periódico (inciso II). É o próprio princípio democrático, dito noutras palavras, que lá encontra dura proteção, afora a expressa referência ainda no art. 1º, de caráter
evidentemente imutável.

23. De tudo dito, não haveria como escapar de posicionamento ao lado dos que defendem a imutabilidade do art. 16 da Lei Maior – uma das pouquíssimas regras, senão a única diretamente ligada ao processo eleitoral com sede na própria Lei Fundamental –, em vista de seu imenso
proveito, após a mitigação da intrínseca complexidade das vontades sociais, para o aperfeiçoamento do procedimento de legitimação das mais sérias decisões políticas nacionais, no caso, diga-se, tomadas pelos próprios cidadãos no sufrágio universal.

24. O ambiente político-jurídico brasileiro anterior à Constituição de 1988 evidenciou os danos causados pela alteração do processo eleitoral de afogadilho. A manutenção de maiorias parlamentares, num regime
autoritário então já enfraquecido, motivou tais mutações legislativas, írritas, deformadas, em atentado aos indícios pálidos de ressurgimento da democracia. Essa percepção é tomada de empréstimo do Eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no que Sua Excelência anotara em voto proferido na ADI 2.626, quando então confidenciara paternal afinidade com a disposição.

25. A gênese do art. 16 tem razão nesses, chamados pelo Ministro PERTENCE, “casuísmos”, tomados durante o regime autoritário. É resultado nítido do aperfeiçoamento do sistema, trazido a um plano pragmático em proveito dos princípios republicano e democrático, encampados com toda força pela ordem constitucional vinda em 1988. Somente com a garantia de preservação das diretrizes do processo eleitoral, ao menos nos instantes próximos ao da realização do pleito, alcançar-se-á um mínimo grau de estabilidade institucional. A inserção de matizes de segurança jurídica nesse campo é virtuosa.

26. Dentro do conjunto de precedentes firmados pelo Supremo
Tribunal Federal, ainda poucos em referência ao específico tema do art. 16 da Lei Fundamental, em todos os discursos surge o julgamento da ADI 354. Não tanto pelo seu desfecho, mais pelos fundamentos dogmáticos dos votos então proferidos, os contornos do campo normativo do preceito constitucional então ganharam cores vivas. Do Eminente Ministro CELSO DE MELLO é a seguinte passagem:

“O legislador constituinte, atento à necessidade de coibir abusos e casuísmos descaracterizadores da normalidade ou da própria legitimidade do processo eleitoral e sensível às inquietações da sociedade civil, preocupada e indignada com a deformante manipulação legislativa das regras eleitorais, em favor de correntes político-governamentais detentoras do poder, fez inscrever, no texto constante do art. 16 da nossa Carta Política, um postulado de irrecusável importância ético-jurídica.”

27. Definidos assim as razões e o papel do preceito, adiante em seu voto Sua Excelência compromete-se com o firme propósito de emprestar a máxima concreção ao art. 16 da Lei Maior. O compromisso vem ilustrado nas seguintes palavras: “Definida, assim, a ratio essendi dessa
norma constitucional, é preciso, é necessário dar-lhe concreção efetiva, para dela extrair todas as suas virtualidades, conferindo-lhe a possibilidade de realizar, no plano jurídico-eleitoral, todas as conseqüências que esse preceito, revestido de eficácia plena e de aplicabilidade direta, imediata e integral, encerra e legitima”.

28. Em seguida, no julgamento da mesma ADI 354, o posicionamento tomado pelo Eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE exprime, em todas as dimensões, o discurso que ora se apresenta. A precisão dos conceitos são marcantes, pois prenunciam toda a idéia de legitimação do debate democrático pelo procedimento. Não há como escapar de sua
transcrição, ao menos em parte:

“O pensamento político contemporâneo tende a emprestar um relevo crescente ao papel das normas processuais lato sensu no funcionamento e na própria definição da democracia, na medida em que nelas se traduz, na expressão de Cândido Dinamarco, ‘a disciplina do exercício do poder estatal pelas formas do processo legalmente instituídas e mediante a participação do interessado ou interessados’. O processo, por isso, acrescento, erige-se num poderoso instrumento de legitimação das decisões públicas, independentemente do seu conteúdo concreto e dos detentores momentâneos do poder. Tem esse significado, por exemplo, a ênfase dada por Norberto Bobbio, à ‘defesa das regras do jogo’, frase de que, significativamente, se utiliza como subtítulo de sua precisos coleção de ensaios sobre O Futuro da Democracia: democracia em torno da qual, explica, o único ponto de acordo possível, quando se fala de democracia, ‘entedida como contraposto a todas as formas de autocracia, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras, primárias ou fundamentais, que estabelecem quem está a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.’ Na mesma linha, creio, é que se põe a cerrada teorização de Niklas Luhman em torno da ‘Legitimação pelo procedimento’ (ed. UnB, 1980). Na democracia representativa, por definição, nenhum dos processos estatais é tão importante e tão relevante quanto o processo eleitoral, pela razão óbvia de que é ele a complexa disciplina normativa, nos Estados modernos, da dinâmica procedimental do exercício imediato da soberania popular, para a escolha de quem tomará, em nome do titular dessa soberania, as decisões políticas dela derivadas. Essa preocupação com a exigência da disciplina normativa das regras do jogo democrático é que, evidentemente, está à base do artigo 16 da Constituição de 88, segundo a qual, ‘a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após a sua promulgação’. É que o reclamo de normas gerais e abstratas sobre os processos estatais, particularmente o processo eleitoral – abstração e generalidades a que bastariam a reserva de lei nestas matérias – perde, na verdade, o seu sentido, se a essa generalidade, se a essa abstração da lei, não se somar a exigência de sua anterioridade ao fenômeno que cuidam de regular: anterioridade que é essencial à aspiração de segurança e de isonomia, que estão subjacentes à idéia qualificada de processo, como do devido processo legal. Não basta, assim, que o jogo tenha regras, é preciso que essas regras sejam prévias à apresentação dos contendores e ao desenvolvimento da disputa e, portanto, imutáveis, até a sua decisão. O processo eleitoral é um sistema: a influência recíproca de seus vários momentos é um dado essencial da caracterização do todo. Por isso, a corrupção da idéia de processo democrático é precisamente o que a nossa crônica política batizou de ‘casuísmo’, mecanismo pelo qual os detentores do Poder têm abusado da forma da lei para impor mudanças nas regras do jogo, depois, que os fatos da vida política tornam previsível o desfecho, contrário aos seus interesses, a que levaria à observância do procedimento anteriormente definido. Os exemplos são notórios. Alguns, ainda recentes. Minha tendência, assim, é de emprestar ao conceito de processo eleitoral, para os fins do artigo 16, extensão tão ampla quanto seus termos comportam, de modo a abranger, radicalmente, desde o alistamento dos eleitores e a habilitação dos partidos à escolha dos candidatos, definindo assim todas as personagens do drama eleitoral; do registro dos candidatos à propaganda; da votação ao procedimento e aos critérios da apuração até o momento culminante da proclamação e da diplomação dos eleitos.”

29. A prevenção que viesse embarcada no argumento de se estar defronte a emenda constitucional, numa possível alheação sua ao significado semântico do termo “lei”, incrustado no início do art. 16, dá de barato o significado do princípio democrático, ou ainda do regime republicano por nós adotado. A prevenção ao casuísmo se dá em termos amplos, precavendo-se o processo eleitoral de qualquer espécie de alteração extemporânea, em detrimento da segurança jurídica exigida pela necessária legitimação do pleito.

30. Diversamente do que ocorrera em 2002 em face da Resolução 20.993, do TSE, quando então seria defensável que a ordem legal instalada – Lei 9.504/97 – já se ocupava das coligações partidárias, no caso presente a EC n.º 52, de 2006, não deixa nenhum dúvida quanto à reformulação das diretrizes normativas do processo eleitoral. O fato de vir veiculada por emenda não denigre todo o discurso até aqui empreendido, pois a consistência do argumento está na preservação do princípio democrático, sua constituição e sua necessária legitimação. Ideais dessa ordem não podem, nem por emenda, ser abatidos (CRF, art. 60, § 4º, II e IV, c/c art. 1º e parágrafo único). Nesse tom foi a conclusão do voto do Eminente Ministro PERTENCE no referida ADI 354:

“Pouco me importa, se a previsível influência dessa mudança de regra de interpretação do voto que contém contradição entre o candidato indicado e a legenda assinalada, será grande ou pequena. Muito menos me importa saber se ela é boa ou má, e se deve dar preferência à presumível vontade de um eleitorado rebelde aos partidos ou se, ao contrário, se deva dar preferência ao reforço da legenda partidária. Como já disse a outro propósito nesta Casa, parece-me que esses valores, conjunturais e remediáveis, de tal ou qual decisão política concreta não superam jamais o valor do respeito e da estabilidade devidos à norma constitucional.”

31. A composição do voto do Eminente Ministro PERTENCE é sólida. Soou límpida, sem resvalo em posições diversas. As conclusões destoaram em tema não menos intrincado, tomando centro na conceituação exata do que se possa caracterizar como “processo eleitoral”. Naqueles hipóteses, debateu-se sobre normas relativas à contagem de votos, isso na
ADI 354, e, num segundo momento, no RE 129.392, sobre a eficácia da Lei Complementar 64/90 às eleições daquele ano. Maioria forjou-se no sentido de que não haveria envolvimento de matéria afinada com o processo eleitoral ou de sua alteração.

32. Mas as dissonâncias serão possivelmente dissipadas nesta hipótese, prescindindo-se de abertura semântica maior do que vem posto no art. 16. Não há como creditar à Emenda 52 natureza outra que não a de, essencialmente, mover o processo eleitoral que irá reger o pleito de 2006
para uma vertente outra, diversa da até então trilhada. Liberam-se coligações de qualquer aspecto, quando, de outro lado, a legislação (como a compreendera o TSE), até 8 de março de 2006 ditava regra de conduta diametralmente inversa. A participação das agremiações partidárias nas
eleições deste ano teve suas dimensões retorcidas. O envolvimento do processo eleitoral nessa temática parece de solene evidência, intrincado que está com a formatação dos veios em que se dará vazão às forças oposicionistas e aos representantes da maioria cunhada em 2002. É a expressão do que Paulo Bonavides chamou de “Teoria da Oposição Política”.

33. A Lei 9.504/97, em seu art. 6º, confere trato normativo ao tema. Os fatos, consubstanciados nas eleições de 2002, dão suporte a essa idéia. Digressões que vingaram no passado num ou noutro sentido da regra não elidem a constatação de que as coligações partidárias são fenômeno regrado pelo ordenamento jurídico, mesmo antes da promulgação da EC n.º 52/2006. O processo eleitoral, independentemente da via utilizada, foi alterado, e não inovado, dentro do período em que o art. 16 da Lei Fundamental o dá como imune à eficácia de nova regra. Haverá revogação do art. 6º da Lei 9.504/97 a partir da promulgação da emenda, ante a incompatibilidade de normas no sistema, o que nos escancara um fenômeno de modificação do quadro normativo, e, em suma, do processo eleitoral.

34. Num discurso racional não poderemos partir da idéia de inovação, pois esse pensamento, premissa da construção, defronta-se com o sistema jurídico instalado, que o contradiz de imediato ao evidenciar o tratamento completo e integral da matéria em instante pretérito. Os termos singulares do precedente marcado no RE 129.392 distanciam a solução lá proposta do caso ora avaliado.

35. Incrementar o argumento com a perspectiva de se ter uma dita “inovação constitucional”, partindo da afirmação de se inseriu um tema novo naquela esfera, o que lhe daria ares de ineditismo, não daria solução ao problema criado com a ignorância ao princípio da segurança jurídica, prestigiado pelo art. 16. Tendo recebido tratamento normativo integral, ainda que por lei infraconstitucional, a alteração do regime por qualquer sede fará emergir as dificuldades que o preceito da anterioridade teria que conter. A proposição, nesses termos, não explica o equacionamento do sistema, nem dá solução aos problemas que a construção iria trazer consigo, deixando o campo racional para imbricar-se em considerações de vontade
apenas.

36. Noutro giro, a propensão de se pensar no art. 1º da EC 52/2006 como alheio à previsão da anualidade pelo argumento de que são as convenções partidárias o ponto de partida do processo eleitoral, instante no qual as coligações já estariam delineadas, ressente-se de um discurso jurídico inapropriado, faltando-lhe o que Alexy classificara de justificação externa 7. É de se questionar a premissa do argumento, pois, além de não possuir respaldo dogmático ou prático, o que abala a própria afirmação de que o processo se inicia a partir das convenções, não se encontra contextualizado. É preciso que se diga que o processo eleitoral, seja qual for o momento de sua partida, tem seu curso direcionado a partir das coligações. Essas últimas não se exaurem num instante, num momento, ocupando-o reiteradamente, como característica, como traço, como modulação talvez, e não como elemento ou parte.

37. Alijar, portanto, as disposições que tratam das coligações partidárias do processo eleitoral pelo critério puramente formal, em que esse se iniciaria a partir das convenções, é argumentação que não encontra base em um discurso jurídico validamente justificado. Faltaria ao resultado interpretativo a devida contextualização com o sistema jurídico examinado, que, diversamente, não vê nas coligações um instante, mas um verdadeiro traço do processo eleitoral. A identificação do altura material em que o processo se inicia não traz luz ao debate acerca da natureza jurídica das regras de coligações partidárias.

38. O que resta do debate, portanto, é a tessitura em volta dos propósitos do artigo 16 da Lei Fundamental, da amplitude do seu campo normativo, da sua relevante importância para a legitimação das decisões políticas pela segurança emprestada ao procedimento e, em última análise,
da funcionalidade que tal disposição confere ao princípio democrático.

39. Com muito mais produção em face das vicissitudes do tema,7 bem examinado na doutrina e na jurisprudência da Corte, em matéria tributária já se teve eloqüente oportunidade de consolidar a segurança jurídica, traduzida pelo que se chamou de “princípio da anterioridade”, como matéria alheia ao dito poder de reforma. Não nos pode fugir à memória a apreciação da ADI 939, em que a Suprema Corte deu extrema relevância ao art. 150, III, b, da Lei Maior, conferindo-lhe proteção tamanha a que nem mesmo alteração promovida por emenda constitucional faria cessar. A instituição do imposto sobre movimentação de natureza financeira (IPMF) pela EC n.º 3, de 1993, deveria ter atendido ao princípio constitucional da anterioridade. Naquela hipótese, a dita emenda trazia explícita ressalva, buscando livrar-se do parâmetro imposto pelo art. 150, III, b. Contudo, a previsão constitucional constituiria limite material ao poder constituinte derivado, foi a orientação tomada naquele julgamento, invocando-se a preservação do estatuto mínimo do contribuinte, dentro do qual, por prestígio constitucional, havia sido instalado o princípio da anterioridade/anualidade, espécie de sub-princípio da segurança jurídica.

40. Em suma, limitação temporal, veiculada em norma constitucional, fora, no passado, tida como garantia do cidadão, inabalável mesmo por alteração constitucional derivada. A problemática levantada agora traz semelhantes considerações, não sendo nada apressado identificar na previsão do art. 16 um instrumento de limitação do poder estatal, a ser exercido, portanto, em parâmetros anteriormente estabelecidos, atendido um lapso temporal específico, dentro do qual estará suspensa a eficácia de norma inovadora do processo eleitoral.

41. Noutro sentido, invocações que tenham como foco a independência das agremiações partidárias, numa proposta em que a previsão do art. 1º da EC n.º 52/2006 trará vivacidade à democracia, são logo desmoronadas por uma visão clara: a liberdade que permeia a vida dos partidos políticos convive, sem atritos, com limitações constitucionais expressas. É de Hector Gros Espiell, ao tratar do regime dos partidos políticos no Uruguai, a seguinte passagem, plenamente assimilável ao nosso contexto:

“La afirmación de que la forma de gobierno de la Nación es la democrática republicana (art. 82) implica la aceptación necesaria de un régimen político basado en la existencia de múltiples partidos cuya constitución, denominación y acción deben ser libres, sin perjuicio del deber de cumplir con los requisitos que la Constitución y la ley les impongan, requisitos que no deben afectar el principio de libertad em que se basa su existência misma. Es decir, que todos los partidos políticos podrán constituirse y actuar libremente, gozando de iguales derechos y sometidos a iguales obligaciones, salvo excepción constitucional expresa.”

42. Finalmente, apenas por cautela, é de se ressaltar a irrelevância do fato do art. 16 ter sido objeto de anterior emenda constitucional (EC n.º 4, de 1993). Essa particularidade não nos permitiria argumentar que a norma esteja fora das limitações materiais ao poder de emenda, bastando ver o real propósito da alteração, qual seja, conforme ressaltado pela doutrina de Celso Ribeiro Bastos, de mera correção técnica, sem influência nas disposições normativas anteriores, prestando-se apenas “…[ao] objetivo [de] aperfeiçoá-lo tecnicamente, para deixar certo que a lei eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação e só se aplicará à eleição que ocorrer após um ano de sua vigência”..

43. Do exposto, conclui-se que é procedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade deduzido na peça inicial, detectada que está a incompatibilidade da parte final do art. 2º da EC n.º 52/2006 com cláusula
imutável da Constituição da República, retratada em seu art. 16, c/c art. 60, § 4º, II e IV, e art. 1º, parágrafo único.

44. Ante exposto, o Procurador-Geral da República opina pela procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade da expressão “…aplicando-se às eleições que ocorrerão ao ano de 2002”, constante da
parte final do art. 2º da EC n.º 52/2006.

Brasília, 20 de março de 2006.

ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA