Busato: ataque às prerrogativas é sinal de perigo à cidadania

quinta-feira, 13 de outubro de 2005 às 08:17

Brasília, 13/10/2005 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, defendeu hoje (13) a integridade e manutenção das prerrogativas profissionais dos advogados, afirmando que num país em que a maioria desconhece seus direitos mais elementares, poucos sabem que as chamadas prerrogativas são, na verdade, direitos inalienáveis do cidadão. “Por isso, os ataques às prerrogativas da advocacia - inclusive no âmbito das CPIs, no Congresso Nacional - são um sinal perigoso e podem resultar no enfraquecimento da profissão, na redução de cidadania”, alertou Busato, lembrando que também ao tempo da ditadura conspirou-se contra as prerrogativas dos advogados.

A afirmação foi feita pelo presidente da OAB ao discursar na abertura da 1ª Conferência Estadual dos Advogados de São Paulo, realizada no Guarujá, no litoral paulista. Em seu discurso, Busato, afirmou que o tema “violação das prerrogativas” nunca foi tão atual. “Quando digo que é atual, reporto-me ao recente festival de truculência e pirotecnia da Polícia Federal, invadindo, ao arrepio da lei, escritórios de advocacia, país afora, e confundindo deliberadamente o advogado com os eventuais delitos de seus clientes”

O presidente da OAB lembrou aos advogados e magistrados presentes à sessão de abertura, que é o direito do cliente que está em pauta quando se exige, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, que se respeite a inviolabilidade do local de trabalho do advogado, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e suas comunicações.

Os deveres dos profissionais da advocacia para com a defesa de seu cliente e para com os direitos da sociedade também foram destacados por Roberto Busato. “Esses compromissos, previstos também no Estatuto da OAB, excedem os deveres corporativos e nos tornam homens públicos, ainda que sem mandato político ou cargo funcional no Estado”, ressaltou o presidente da entidade máxima da advocacia brasileira. “Mais que isso, nos tornam inapelavelmente comprometidos com o Estado Democrático de Direito”.

Busato recordou, ainda durante a solenidade, algumas reivindicações da advocacia que constaram da Carta de Florianópolis, documento-síntese divulgado no encerramento da XIX Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Florianópolis (SC). Ele citou a manifestação de indignação feita pela classe contra o descalabro administrativo, a corrupção, a impunidade e a ausência de políticas públicas que atendam aos objetivos fundamentais da República, declarados na Constituição Federal.

“Com relação à crise política que aí está e que é sobretudo ética e moral exigimos naquela Conferência, e o reiteramos agora, a exemplar punição dos envolvidos em atos de corrupção e malversação de dinheiro público, observado o devido processo legal, impedindo-se que a renúncia ao mandato eletivo faça cessar o processo punitivo”, finalizou Busato.

A seguir, a íntegra do discurso proferido pelo presidente nacional da OAB, Roberto Busato:

Senhoras e senhores

É sempre com alegria que venho a São Paulo, berço da Independência e do ensino jurídico em nosso país. Aqui, instalou-se, há 178 anos, a primeira Faculdade de Direito do Brasil a do Largo de São Francisco, em que se formaram alguns dos mais renomados advogados e juristas de nossa história.

Terra dos bandeirantes, que desbravaram e demarcaram as fronteiras deste país-continente, São Paulo sempre se fez presente nos momentos decisivos em que o interesse da nacionalidade, os embates da liberdade contra a tirania, interna ou externa, assim o exigiram.

Nas lutas da advocacia nacional que são as lutas da sociedade civil brasileira em prol do Estado democrático de Direito, a seccional paulista foi sempre um braço forte da OAB, em seus 75 anos de existência.

Estar em São Paulo sobretudo aqui, nesta seccional é vivenciar toda essa densidade histórica, essa memória de bravura e determinação.

É, pois, com imenso prazer, que saúdo, em nome da advocacia brasileira e do Conselho Federal da OAB, esta 1ª Conferência Estadual dos Advogados de São Paulo.

Louvo seus organizadores, na pessoa de seu presidente, Luiz Flávio Borges D’Urso, e a oportunidade do tema proposto: “Por uma Ordem aberta a todos”. Nada mais oportuno e nada mais em consonância com os propósitos de minha administração.

Quero efetivamente que a Ordem seja, cada vez mais, a Casa do Advogado e a tribuna da sociedade civil brasileira. Uma Ordem aberta a todos os brasileiros.

O tema a que me propus - e com o qual espero contribuir para os debates desta Conferência Estadual - é dos mais atuais e instigantes: “Prerrogativas do Advogado”.

Tive a oportunidade, como os senhores se recordam, de abordá-lo na XIX Conferência Nacional, em Florianópolis, mês passado.

Não por acaso, foi dos temas que mais arrebataram a platéia. Quando digo que é atual, reporto-me ao recente festival de truculência e pirotecnia da Polícia Federal, invadindo, ao arrepio da lei, escritórios de advocacia, país afora, e confundindo deliberadamente o advogado com os eventuais delitos de seus clientes.

Num país em que a maioria desconhece seus mais elementares direitos de cidadania, poucos sabem que as assim chamadas prerrogativas da advocacia são, na verdade, direitos inalienáveis do cidadão.

É ele o objeto de defesa do advogado – cuja ação não desfaz o eventual delito, apenas oferece defesa, em busca de justiça.

Advocacia não envolve apenas prerrogativas. Há os deveres, a missão profissional. A advocacia envolve-se de tal forma com os destinos da nação que é a única atividade profissional a ter sido alçada ao nível de preceito constitucional.

A Constituição Federal, como se sabe, estabelece, em seu artigo 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Ao distingui-lo nesses termos, o constituinte definiu-o para além de sua atividade estritamente privada, qualificando-o como prestador de serviço de interesse coletivo e conferindo a seus atos múnus público. Não há outra profissão com status equivalente.

Para alguns, trata-se de privilégio ou prerrogativa, mas, na verdade, trata-se de compromisso com a coletividade, verdadeira promissória social que assumimos ao proferir o juramento solene do advogado, que vincula o exercício da profissão, entre outras coisas, à defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado de Direito democrático, dos direitos humanos e da justiça social.

Esses compromissos, previstos também no Estatuto da OAB, excedem os deveres corporativos e nos tornam homens públicos, ainda que sem mandato político ou cargo funcional no Estado.

Mais que isso, nos tornam inapelavelmente comprometidos com o Estado democrático de direito. Daí a presença de nossa instituição na trincheira das grandes lutas políticas nacionais em defesa da democracia ao longo de seus 75 anos de existência.

É o direito do cliente que está em pauta, quando se exige, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, que se respeite a inviolabilidade do local de trabalho do advogado, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas e afins.

Comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, quando se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis, são prerrogativas inegociáveis da advocacia (e da cidadania), assim como também o ingresso livre nas prisões, mesmo fora da hora de expediente.

São direitos que se destinam aos jurisdicionados e aos cidadãos, para que tenham uma Justiça digna desse nome.

Por isso, os ataques às prerrogativas da advocacia – inclusive no âmbito das CPIs, no Congresso Nacional - são um sinal perigoso e podem resultar no enfraquecimento da profissão, na redução de cidadania.

Se o advogado não pode atuar com independência e liberdade – sobretudo no Parlamento, que é a Casa do Povo -, o que está em risco é a democracia. E com ela a cidadania.

Por essa razão, a OAB lançou ano passado campanha nacional em defesa dessas prerrogativas, ameaçadas ciclicamente de supressão, a pretexto de combate à criminalidade. Não é uma campanha circunstancial – é campanha permanente.

Também ao tempo da ditadura, conspirou-se contra as prerrogativas do advogado, àquele tempo a pretexto de defesa da segurança nacional, que acobertava tortura a presos políticos e outras violações a direitos humanos e constitucionais.

Ontem como hoje, o que está em pauta é a defesa da liberdade e da cidadania. Não importa se se trata de pobre ou rico, influente ou não. Todos têm direito à presunção de inocência, ao contraditório, ao devido processo legal.

Ninguém pode ser condenado senão mediante sentença transitada em julgado. E o advogado é o elo efetivo entre esses direitos elementares de cidadania e a Justiça.

Quando se conspira contra o advogado, conspira-se contra o bem comum. Como disse Ruy Barbosa, “legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado”.

Sem elas, não há justiça, nem cidadania. Se há maus profissionais, que não honram esses pressupostos, a solução não é tomá-los pelo todo e a pretexto deles punir a coletividade, até porque são minoria.

A OAB, no que concerne ao cumprimento dos deveres éticos e legais por parte dos advogados, tem sido implacável nas sanções disciplinares aos infratores, sem deixar de lhes assegurar ampla defesa.

Sabemos da distinção com que nossa atividade é qualificada na Constituição, o que muitos nos honra. Mas sabemos também que a contrapartida inapelável é o sagrado compromisso com a ética.

Esse o dever máximo da advocacia, que resume e contém todos os demais.

E aí volto a Ruy Barbosa, que definia este nosso ofício como um sacerdócio. Um sacerdócio que, segundo ele, impõe “a missão da luta pelo direito contra o poder, em amparo dos indefesos, dos proscritos, das vítimas da opressão, tanto mais recomendáveis à lei quanto mais formidável for o arbítrio que os esmague (...)”.

A advocacia é, pois, em essência, um instrumento contra a opressão e em favor da sociedade. Em todo o mundo, as ordens de advogados funcionam de modo semelhante ao nosso: compatibilizam sua missão corporativa com sua função ética, de coadjuvante na promoção da justiça.

Em países como o Brasil, ainda fortemente marcado pela exclusão social, há questões elementares em pauta. O termo justiça não tem sentido apenas institucional o Poder Judiciário. Invoca-se justiça em sentido mais abrangente, de incorporar ao convívio social regular, imensos contingentes que vivem abaixo da linha de pobreza.

Não pode, pois, a Ordem dos Advogados do Brasil ater-se apenas ao universo institucional dos operadores do Direito. É preciso que se envolva mais a fundo na cobrança aos governantes por justiça social, por ética na política – ética hoje tão espantosamente violada, pela sucessão de escândalos no Executivo e Legislativo.

Daí porque a advocacia brasileira cobra mudanças na política econômica, envolve-se e pressiona para que as reformas estruturais sejam empreendidas.

Na Carta de Florianópolis, documento-síntese da XIX Conferência Nacional da OAB, manifestamos nossa indignação com o descalabro administrativo, a corrupção, a impunidade e a ausência de políticas públicas que atendam aos objetivos fundamentais da República, declarados na Constituição Federal – quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer espécie.

Dissemos também, naquele documento, que o enfraquecimento dos poderes públicos prejudica o desempenho de sua tarefa maior, que é a defesa da soberania nacional, no que tange, notadamente, aos recursos energéticos, à biodiversidade e à floresta amazônica.

Com relação à crise política que aí está e que é sobretudo ética e moral exigimos naquela Conferência, e o reiteramos agora, a exemplar punição dos envolvidos em atos de corrupção e malversação de dinheiro público, observado o devido processo legal, impedindo-se que a renúncia ao mandato eletivo faça cessar o processo punitivo.

Outro ponto focado foi quanto ao sistema financeiro. Não podem os advogados aceitar que parte expressiva dos recursos públicos continue sendo destinada a atender à ganância monetarista, enquanto os direitos fundamentais da pessoa humana, no que se refere ao acesso ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia, à terra, à segurança e à Justiça, continuam sistematicamente negados.

Falamos também a respeito do Judiciário, cuja reforma, mesmo apresentando alguns avanços, como a criação do Conselho Nacional de Justiça, cuja autonomia deve ser urgentemente assegurada, ficou muito aquém da expectativa da sociedade.

O Judiciário, lamentavelmente, continua distanciado da realidade social. E a triste realidade é que vivemos numa república pouco ou nada republicana.

Em novembro do ano passado, desapontada com o mau desempenho de nossos homens públicos – e com o objetivo de dar efetivo conteúdo participativo à nossa democracia -, a OAB lançou, sob a inspiração do eminente professor e jurista Fábio Konder Comparato, outra Campanha Nacional de envergadura: a de Defesa da República e da Democracia.

Já naquela ocasião, bem antes de suspeitarmos que nos subterrâneos da República corria o lamaçal do Mensalão, antevíamos o descrédito total das instituições, em face do mau papel de seus agentes.

O objetivo da campanha era – e é - induzir a sociedade civil organizada a uma reflexão a respeito do significado mais profundo da palavra República, tão ausente de nossas práticas políticas.

No discurso em que anunciei a campanha, fiz a seguinte indagação: teríamos nós, elite pensante deste país, entendido o sentido profundo daquele ato político, da proclamação da República?
Creio que o desdobramento da vida nacional no decurso destes 115 anos de vida republicana responde claramente pela negativa.

Mesmo em tempo de democracia formal, como agora, a cena política brasileira nos dá muitas vezes a impressão de um grande teatro, no qual os atores, em vez de representarem democraticamente o povo, representam perante o povo, iludindo-o.

Quanto a isso, basta assistir a uma sessão de qualquer das três CPIs em curso no Congresso ou mesmo às do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados.

A triste realidade é que o povo tem sido, no decorrer de nossa história, mero expectador.

Admite-se que de tempos em tempos escolha os atores do teatro político, mas nunca as peças a serem encenadas.

A preocupação com o bem comum sempre esteve ausente da nossa vida política, quer na Colônia, quer no Império, quer na República. O conhecido juízo de Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, foi, como se sabe, categórico.

Escreveu ele, no século XVII: “Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.
Podemos dizer que a situação hoje é diferente? Que, apesar da Proclamação da República, isso mudou?
Para que superemos esse estágio de democracia formal e ingressemos numa era efetiva de democracia participativa, é preciso que estabeleçamos o povo brasileiro no lugar que de direito e justiça lhe cabe, como princípio e razão de ser de toda ação política.

É preciso colocá-lo como agente de seu próprio destino. E a advocacia, pela liderança que exerce e pelo papel constitucional que lhe cabe, tem responsabilidades fundamentais nesse processo.

A História ensina, ao longo de tantas lutas e na sucessão de tantos desastres, que a melhor defesa dos direitos do povo é aquela que ele mesmo organiza.

Nesse sentido, a democracia aparece como complemento indispensável do regime republicano.

Se a finalidade última do Estado é prover o bem comum, nada mais justo e necessário do que garantir ao próprio povo a plena titularidade dessa soberania.

E aí a OAB tem também algo de concreto a propor e o fez no âmbito da Campanha de Defesa da República que há pouco mencionei. Nossa Constituição abre-se com a afirmação solene de que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito.

E enfatiza, de modo lapidar: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único).

Ambas essas maneiras, pelas quais o povo pode e deve exercer a sua soberania, são entre nós é doloroso dizê-lo largamente falseadas. Daí porque nossa democracia é meramente formal e não participativa.

O povo elege livremente seus representantes, o que já é um apreciável progresso em relação ao regime autoritário, que precedeu a Constituição em vigor.

Mas esses representantes do povo gozam de plena autonomia para desempenhar o seu mandato como bem entendem.

Eles se acham plenamente autorizados a decidir sobre os destinos do país e a alienar o patrimônio nacional, sem se considerarem minimamente obrigados a atender as exigências populares, ou a cumprir o programa de atuação com que se comprometeram e com o qual foram eleitos.

Nem aos partidos pelos quais se elegem são fiéis.
Já no tocante aos instrumentos de democracia direta o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, inscritos no art. 14 da Constituição, nós, elite dirigente deste país, os negligenciamos.

É bem verdade que estamos prestes a exercer o referendo popular em relação à importante temática do desarmamento.

Mas esses instrumentos têm sido peças inúteis de um mecanismo meramente ornamental, ao contrário do que ocorre em diversos outros países, inclusive vizinhos nossos na América Latina, que os utilizam largamente como meios de expressão e de formação ético-política da vontade popular.

É por essa razão que o primeiro ato da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, que volto aqui a mencionar, consistiu na apresentação de proposta de nova lei reguladora do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular legislativa, já em tramitação no Congresso.

Trata-se de fortalecer a cidadania e de resgatar na sua essência o compromisso republicano. É ainda uma ação pontual, embora eficaz e de grande potencial mobilizador. A democracia só será efetivamente participativa, sem tutelas ou paternalismos, quando nossa sociedade superar as barreiras do analfabetismo e da exclusão social.

E são essas barreiras que põem em risco, entre outros direitos da cidadania, as prerrogativas da advocacia. Daí a necessidade premente, obstinada, permanente, de defendê-las – não apenas como legítima causa corporativa, mas, bem mais que isso, como imperativo fundamental da liberdade e do Estado democrático de Direito.

Que os debates desta Conferência Estadual de São Paulo aprofundem essas questões e fortaleçam as lutas da advocacia e da cidadania brasileiras – uma luta comum e inadiável, que irão moldar o futuro de grandeza deste país.

Muito obrigado.