Unafisco na OAB: Super-Receita revogada ou caos previdenciário

quarta-feira, 24 de agosto de 2005 às 04:09

Brasília, 24/08/2005 – O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), Carlos André Soares Nogueira, afirmou hoje em reunião na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que ou se revoga a Medida Provisória nº 258 – a chamada Super-Receita – ou haverá um verdadeiro caos administrativo no sistema previdenciário brasileiro. No encontro com o presidente em exercício da OAB, Ercílio Bezerra, o presidente do Unafisco explicou que a união de órgãos do Ministério da Previdência com os da Fazenda para o gerenciamento desses recursos, sem o planejamento e preparo prévios, está trazendo uma paralisia e grande desorganização ao sistema previdenciário.

“Não houve nenhum planejamento anterior, não houve preparo, nenhum cuidado. Estão juntando duas mega-estruturas, com milhares de servidores, com milhares de atividades extremamente específicas, especializadas e complexas sem o menor cuidado, sem a menor preparação”, afirmou Carlos André Soares Nogueira. A MP 258, em vigor desde 21 de julho, modificou o financiamento da Previdência pública, fazendo com que o gerenciamento dos recursos passasse a ser feito conjuntamente, por Secretaria da Receita Previdenciária e Receita Federal.

A Unafisco criticou na OAB principalmente o fato de as estruturas dos dois Ministérios estarem sendo destinadas ao gerenciamento dos recursos previdenciários, sem que tivesse ocorrido, antes, um debate com a sociedade e uma melhor organização das estruturas. “Da forma como está sendo feito, estamos prevendo que haverá um caos administrativo, caos este que, pelo relato dos procuradores da Previdência, já está ocorrendo, especialmente no âmbito da dívida ativa, da execução da dívida ativa”, exemplificou.

Carlos André Soares Nogueira acrescentou, ainda, que o texto da MP 258 traz diversas inconstitucionalidades, entre elas a ausência dos preceitos de urgência e relevância – indispensáveis para a edição de qualquer medida provisória no Brasil.

A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo presidente do Unafisco, Carlos André Soares Nogueira, logo após reunião na OAB:

P – O que o Unafisco considera de inconstitucional nessa MP 258, a chamada Super-Receita? Por que essa MP é considerada prejudicial?
R – Bom, começando pela inconstitucionalidade. Ela não tem nem o requisito da urgência e nem o de relevância, que são os exigidos para a edição de qualquer medida provisória. Ela não tem o requisito de urgência por motivos óbvios. A arrecadação vinha crescendo e o Estado não tem nenhuma urgência, de imediato, em modificar isso. O próprio texto da MP prevê que ela só vai entrar em vigor 20 dias depois e vai se completar somente no período de um ano. A questão da relevância não é pela matéria que é tratada, mas pelo objetivo da medida provisória, que também não há essa necessidade. Além do mais, não é conveniente que se utilizem medidas provisórias para fazer uma reforma do Estado desta magnitude, dessa forma. O debate aprofundado da matéria pela sociedade, via projeto de lei, seria o mais adequado para modificar o Estado dessa maneira. Também existem outras inconstitucionalidades no texto, quando trata da administração dos recursos da Previdência, quando trata de disposição de atribuições, de transformação de cargos.

P – Que inconstitucionalidades?
R – Há uma série de outras inconstitucionalidades que, inclusive, a própria OAB está levantando. Mas a questão principal levantada por essa Medida Provisória é que ela aponta para o financiamento da Previdência Pública. Ela retira a administração dos recursos da Previdência, de dentro do Ministério da Previdência, e passa para o Ministério da Fazenda, que trabalha com uma lógica distinta. O Ministério da Previdência trabalha com a lógica de promover a assistência, promover uma cobertura social para a população. Trata-se, hoje, do maior programa de distribuição de renda do país, da América Latina. Nossa situação de disparidade econômica seria muitas vezes pior se não existisse a Previdência pública. Por outro lado, o Ministério da Fazenda trabalha com outra lógica, a de fechar o superávit primário, de arrecadar mais e gastar menos, que é uma lógica completamente diferente. Além do mais, existe um princípio na administração da Previdência que é de uma administração quadripartite, ou seja, com representação do Estado, dos trabalhadores, dos empregadores e dos próprios aposentados exatamente para garantir a destinação dos recursos, a lógica, seu objetivo. Não existe isso dentro do Ministério da Fazenda. Neste Ministério a visão é outra, a estrutura é outra e não existe essa supervisão, nem para a administração dos recursos, nem para o lançamento, nem para a fiscalização, para nada.

P – O que o Unafisco está procurando fazer e que pode fazer legalmente, de forma jurídica, para que essa MP seja retirada?
R – Desde antes dessa edição da medida provisória nós alertamos o governo quanto a esse problema. Editamos documentos mostrando a inconveniência de se fazer tantas mudanças por meio de uma medida provisória, a inconveniência de se mudar a administração dos recursos da Previdência. Mas o governo não debateu essa intenção de fusão nem conosco, nem com qualquer setor da sociedade. Não debateu nem o texto da medida provisória em si ou seus defeitos, seus objetivos. Neste momento, dentro do Congresso Nacional, conseguimos fazer com que o governo fosse para o debate, mas ele o fez de forma a reduzir o debate à mera questão de corporação, como se o importante fosse discutir a situação funcional de cada uma das categorias de servidores públicos envolvidos com isso. Não houve e nem está acontecendo o debate com a sociedade, com os trabalhadores interessados, com a sociedade que se preocupa com o Estado, com as atribuições do Estado, com a condição social e econômica do país. Todo o debate está ocorrendo dentro do Congresso Nacional. Quando nós buscamos a OAB foi exatamente para trazer para uma entidade que tem a relevância no campo jurídico e no campo representativo da sociedade, que se preocupa com esses problemas. E foi muito interessante saber que a OAB já tinha tomado conhecimento dessa medida provisória, já está analisando, estuda a possibilidade de entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade se, realmente, se confirmarem os estudos quanto às inconstitucionalidades. No caminho jurídico há algumas ações em tramitação. São duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, cujos pedidos de liminar ainda não foram apreciados pelos ministros. Nós estamos esperando que o Ministério Público e OAB também ingressem na esfera judicial.

P – A Receita Federal vem, a cada mês, aumentando a sua arrecadação no país. Você diz que o governo tomou a atitude de editar a medida provisória sem ouvir ninguém, quando poderia ter feito por meio de projeto de lei. Na sua opinião, porque que o governo Lula resolveu adotar, de forma açodada, a criação dessa Super-receita? O que aconteceu?
R – Se voltarmos no tempo, vamos lembrar que a medida provisória, no dia 21 de julho, foi editada junto com o anúncio dos novos ministros e como uma resposta do governo à crise política naquele momento. Então, se tentou dar uma capa, uma aparência de choque de gestão, como uma resposta, no campo administrativo e econômico à crise política, que é uma crise de fundo moral, de fundo ético, de fundo político, que agora vemos os desdobramentos em caixas dois de campanha, corrupção, etc. Então, o “timing” dessa medida provisória foi esse. Tanto que a última notícia que tivemos, anterior à edição, é que o processo de fusão de ministérios na Super-Receita estava suspenso, sobrestado. Essa notícia foi de março. E, de repente, de uma hora para outra, o governo decidiu editar essa matéria e decidiu fazê-lo por medida provisória, num improviso impressionante.

P – Como a Unafisco sentiu improviso por parte do governo?
R – No dia da edição da Medida Provisória, a seqüência de fatos foi assim: nós tivemos uma reunião com o secretário da Receita Federal, que levou do meio-dia até 13h. Perguntamos a ele se a decisão sairia via medida provisória ou projeto de lei e ele nos informou que nada estava definido. Às 14h30 nos ligaram do gabinete do secretário para dizer que seria via medida provisória. Próximo das 4h nos informaram, da Casa Civil, que seria por meio de projeto de lei. Às 18h daquele dia, quando o presidente Lula estava anunciando, voltaram a nos ligar, da Casa Civil, para dizer que seria medida provisória. Bom, às 20h nós tivemos acesso à minuta da MP e começamos a estudá-la. Às 23h recebemos o texto diretamente da Casa Civil, por meio magnético, e o publicamos no nosso site. Às 9h da manhã do dia seguinte ligaram para o meu celular para informar que o texto que foi publicado no Diário Oficial era diferente do texto que nos foi encaminhado às 23h da noite anterior. Além disso, a edição da medida provisória é do dia 21 e a sua exposição de motivos é do dia 22. Quer dizer, o improviso foi muito grande.^

P – Como o senhor avalia a edição dessa medida provisória, que o Unafisco considera prejudicial, neste momento de crise que o país está passando?
R – Em momentos em que denúncias de mensalão, caixa dois, financiamentos, sonegação de tributos de pessoas físicas e jurídicas e corrupção vindo à tona, as instituições do Estado crescem de importância. Se a Receita Federal não trabalhar com afinco, não de forma vinculada à política do Governo mas como uma política de Estado permanente, séria, continuada, o Ministério Público Federal e o Judiciário não vão atravessar essa turbulência. Então, como se pode improvisar por meio de uma medida provisória num órgão de Estado tão importante – a Previdência Social – num momento como esse que estamos vivendo? Isso vai causar uma paralisia. Na hora em que houver de fato a fusão das atividades dos dois Ministérios vai haver uma paralisia no órgão sem proporção. Por quê? Não houve nenhum planejamento anterior, não houve preparo, nenhum cuidado. Estão juntando duas mega-estruturas, com milhares de servidores, com milhares de atividades extremamente específicas, especializadas e complexas sem o menor cuidado, sem a menor preparação. Naturalmente já haveria uma paralisia, uma desorganização, até que o Estado volte a se organizar. Mas, da forma como está sendo feito, estamos prevendo que haverá um caos administrativo, caos este que, pelo relato dos procuradores da Previdência, já está ocorrendo, especialmente no âmbito da dívida ativa, da execução da dívida ativa.

P – Mas por que? O senhor pode dar um exemplo disso?
R – Criou-se uma nova realidade: os créditos inscritos em dívida ativa antes da MP, que são administrados pelos procuradores federais, e os créditos novos, que passam a ser, então, administrados, a sua execução, fica sob a responsabilidade da Procuradoria da Fazenda. Então, o mesmo contribuinte pode ter créditos lá e cá. Para emitir uma certidão negativa de débitos, por exemplo, ele vai precisar consultar os dois. A Medida Provisória 258 já está valendo, então, qualquer inscrição em dívida ativa, desde a segunda-feira passada (15), tem que ser feita já no âmbito da Procuradoria da Fazenda Nacional, que não tem a menor condição de fazer, mas está fazendo. Só que o contribuinte, quando o crédito vai para prescrição em dívida ativa, já é inscrito no Cadin, de forma direta. Então, há um imbróglio enorme de imediato. Nós pleiteamos, há algumas semanas, que o governo se sensibilize com essas questões e retire a medida provisória, ou seja, apresente um projeto de lei para propor as mudanças. O projeto de lei traria, primeiro, a possibilidade de um amplo debate com a sociedade sobre o Estado, sobre o seu financiamento. Isso acabaria com o problema de ter vigorando essas regras atabalhoadas.

P – Há a expectativa de que o governo faça isso?
R – O governo não está se mostrando sensível a esse pleito, infelizmente.

P – Todo mundo sabe que dinheiro de caixa dois é um dinheiro sujo. Se é dinheiro limpo, vai para as contas dos partidos. Enfim, ele entra na conta da empresa de uma forma anormal, com nota. O presidente da República foi à televisão admitir que nas campanhas eleitorais há dinheiro do caixa dois e, ontem, na CPI, o ex-deputado Waldemar Costa Neto disse que pagou as contas de campanha de Lula, com dinheiro de caixa dois. Como é que você, como presidente da Unafisco, encara essa situação: o próprio Presidente da República dizendo que se comete caixa dois no Brasil?
R – O caixa dois não é uma prática recente e, infelizmente, é muito comum. Não apenas para o financiamento dos partidos, como estamos vendo agora, mas como forma de sonegar. E essa sonegação, a evasão fiscal, ela está muito ligada à lavagem de dinheiro. Está ligada a outros tipos de ilícitos e outros crimes. Preocupa-me, por exemplo, a não existência de uma presença maciça da Receita Federal nas investigações. Na época do PC Farias, tínhamos 50 ou 60 auditores, em força-tarefa, em grupos especiais, participando dessas apurações. Agora nós não temos notícia de que isso esteja acontecendo. Então, como isto não está sendo feito? Porque não basta fazer isso numa fiscalização rotineira. Essa fiscalização rotineira é uma ação eficaz, efetiva, correta e tudo mais? É. Mas neste momento, da mesma forma que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal estão dedicados a estas questões, também a Receita Federal, como instituição estatal, deveria também estar dedicada a esta apuração. Infelizmente, não está. Aí eu volto àquilo que estava dizendo: uma instituição do Estado não pode, de forma alguma, estar vinculada à política de governo.