Busato: só mobilização e Justiça podem sanear instituições
Brasília, 09/08/2005 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, afirmou hoje (09), durante sessão solene de abertura da Conferência dos Advogados do Distrito Federal, que a expectativa da entidade é de que a atual crise política “mobilize a sociedade civil, da qual a OAB é expoente, no sentido de promover as transformações necessárias para que as instituições republicanas sejam saneadas”. Depois de observar que a crise “é de doloroso conteúdo aético”, Busato ressaltou que a impunidade está hoje também vinculada à deficiente estrutura do Judiciário brasileiro.
Ele salientou que o Brasil é um país há muito tempo sedento de Justiça, cabendo aos operadores do Direito parcela importante de responsabilidade no resgate dessa dívida. Em sua opinião, o saneamento das instituições esperado pela população brasileira “pode se dar mediante convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, a ser eleita nas próximas eleições gerais, com prazo determinado para cumprir sua missão e a seguir ser dissolvida”.
Para o presidente nacional da OAB, a impunidade - que considerou um verdadeiro flagelo da cidadania brasileira -, não é apenas um desvio moral e cultural, mas também resultado da precariedade estrutural do Judiciário. “Imagine o que é dispor de apenas 13 mil juízes para distribuir justiça a um país de mais de 175 milhões de pessoas”, acrescentou ele, lembrando que um país como a Alemanha, com 80 milhões de habitantes, dispõe de 120 mil juízes, ou doze vezes mais que o Brasil.
Roberto Busato afirmou ainda em seu discurso que o anacronismo estrutural do Poder Judiciário brasileiro “torna-o ineficaz e acessível apenas aos mais afortunados”. Para ele, outro grave problema da crise judiciária brasileira está ligado ao empobrecimento do sistema educacional. “”Os juízes de amanhã, como os de hoje, são oriundos de faculdades condenadas pela avaliação oficial”.
A seguir, a íntegra do pronunciamento do presidente nacional da OAB na Conferência dos Advogados do Distrito Federal:
“É sempre com prazer que compareço a esta seccional de Brasília, que tem sido historicamente auxiliar de inestimável valia ao Conselho Federal.
Nesta série de conferências estaduais preparatórias à Conferência Nacional de setembro, em Florianópolis, tenho abordado os mais diversos temas pertinentes à advocacia no contexto político-institucional do país.
A presente crise política, por sua gravidade, praticamente invade todas as palestras e discursos. Não há como ignorá-la, sobretudo num âmbito como o nosso, que tem, entre seus deveres estatutários precípuos, o de defender a ordem constitucional do Estado democrático de Direito.
Faço esse preâmbulo antes de ir ao tema que me foi proposto para esta palestra: a reforma do Poder Judiciário, que considero não apenas uma prioridade, mas uma emergência institucional brasileira.
Se fosse possível resumir a crise brasileira numa só palavra, mesmo esta que está aí, diria que é uma crise de justiça justiça no sentido amplo, de um país em que há mais excluídos que incluídos socialmente; em que parte substantiva da representação política não honra a delegação que recebe; e justiça no sentido institucional, de um país cujo Poder Judiciário não é acessível à maioria da população.
O Poder Judiciário sofre, como todas as instituições do Estado contemporâneo, os múltiplos reflexos e impactos de um mundo em vertiginoso processo de mutação.
É mais que evidente que sua estrutura tornou-se anacrônica, disfuncional, inadequada às demandas da sociedade moderna. Sua estrutura orgânica está ultrapassada. Apesar de todas as transformações por que passa o mundo; nos campos da tecnologia, das técnicas de gerenciamento e administração e dos padrões de comportamento, nenhuma evolução efetiva foi introduzida nos diversos estágios de formação da decisão judicial.
O Judiciário, ao longo das últimas décadas, tem estado alheio às transformações, indiferente à ação do tempo. Diga-se, em sua defesa, que não é o único dos Poderes da República nessa condição. O Estado brasileiro, com muita lentidão e parcimônia, somente há poucos anos começou a discutir ajustes estruturais indispensáveis a seu funcionamento.
O Judiciário, por suas características de apoliticidade e independência, resiste mais a esse processo.
A OAB não é a única voz a proclamar essa falência estrutural do Judiciário. Vozes ilustres e qualificadas do próprio Judiciário já o fizeram. Cito, entre outras, a do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, e a do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nélson Jobim.
Trata-se de problema que não é apenas brasileiro. É mundial, com ênfase maior, claro, nos países em desenvolvimento.
O anacronismo estrutural do Poder Judiciário brasileiro torna-o ineficaz, acessível apenas aos mais afortunados. Na grande maioria do território nacional, a Justiça convive com a escassez e a precariedade. Em numerosas comarcas não há sequer papel.
Em plena era da civilização digital, não há computadores e as velhas máquinas datilográficas mecânicas do início do século, em regra quebradas, são a tecnologia dominante.
Se queremos levar justiça ao povo, tornar o Brasil um país menos iníquo, o ponto de partida, a ação primeira é dotar o Poder Judiciário dos meios materiais básicos para que funcione.
Sem estrutura; aí entendidos magistrados em número suficiente e bem-formados, mão-de-obra assessora qualificada, equipamentos e recursos mínimos para que a máquina funcione, a Justiça não tem como chegar ao povo.
A impunidade, verdadeiro flagelo da cidadania brasileira, não é apenas um desvio moral e cultural; é também resultado inevitável da precariedade estrutural do Judiciário. Imagine-se o que é dispor de apenas 13 mil juízes para distribuir justiça a um país de mais de 175 milhões de pessoas!
Para que se tenha uma base de comparação, basta dizer que um país como a Alemanha, com 80 milhões de habitantes, menos da metade do nosso, dispõe de 120 mil juizes doze vezes mais que nós.
Na Itália, o Tribunal de Apelação, que corresponde ao nosso Superior Tribunal de Justiça, possui 400 juízes. O nosso STJ possui apenas 33. Com tal estrutura, não é de admirar que o Judiciário funcione precariamente e sua cúpula pretenda que a litigiosidade do povo brasileiro se ajuste ao estado de insuficiência no qual sobrevive. Mas não é tudo.
Além dessa estrutura insuficiente, há ainda a sobrecarga que lhe causa nossa legislação processual; e esse aspecto, como é óbvio, não foi contemplado na proposta de reforma do Judiciário aprovada ano passado pelo Congresso.
São indispensáveis mudanças urgentes nas codificações processuais, onde é rotina, numa mesma causa, haver inúmeros agravos de instrumento e recursos aos tribunais superiores.
Tem-se aí uma repartição de responsabilidades. O Judiciário não é apenas problema do Judiciário, mas fruto também da omissão que lhe devotaram, ao longo dos anos, os demais Poderes. E isso decorreu não apenas da falta de leis ou de investimentos estruturais na máquina administrativa judiciária. É preciso que o Estado promova medidas concretas destinadas a preparar as próximas gerações de operadores do sistema judiciário brasileiro.
Este é outro dos graves problemas da crise judiciária brasileira (e que certamente não atinge apenas esse setor): o empobrecimento do sistema educacional. Os juízes de amanhã, como os de hoje, são oriundos de faculdades condenadas pela avaliação oficial. Eis o quadro real: no triênio anterior à minha posse na presidência do Conselho Federal, a OAB foi favorável à criação de 19 cursos jurídicos. O Conselho Nacional de Educação autorizou, no mesmo período, a criação de 222 cursos.
Vejam a disparidade: apenas 19 desses cursos preenchiam as condições técnicas básicas, elementares. Os outros 203 estavam numa escala de precariedade simplesmente inaceitável. Mesmo assim, entraram em funcionamento.
Levamos essas preocupações - e esses números - ao então ministro da Educação, Tarso Genro, que se mobilizou para dar um freio de arrumação na farra dos cursos jurídicos. Mas tememos a descontinuidade dessas ações, sobretudo agora, que a crise política paralisa de vez o atual governo.
Vivemos a trágica circunstância de recrutar em estabelecimentos de ensino inadequados funcionários e magistrados despreparados para a nobre e indispensável missão de produzir justiça.
Eis aí, portanto, outra questão basilar, prioridade das prioridades, se se quer efetivamente remodelar o Poder Judiciário, reduzir sua taxa de ineficiência, seus problemas de natureza ética e disciplinar.
Fomos voz pioneira na defesa da reforma do Judiciário, que, mesmo sem ter sido a dos nossos sonhos, representou um avanço para o país. Nela, se estabelece um controle externo à administração do Judiciário, impõe-se o princípio da quarentena aos magistrados que se aposentam e voltam a advogar, proíbe-se o nepotismo. Associam-se medidas de ordem estrutural a outras de sentido moral.
São mudanças ansiadas pela sociedade.
O controle externo, que gerou polêmica e questionamentos, já foi assimilado pela magistratura, que, a princípio, reclamava de controle externo para os outros dois poderes da República e para a advocacia. Só que esse controle externo já vigora há tempos para os outros dois Poderes.
É o controle da opinião pública, que, em eleições periódicas, promove julgamento em massa de seus representantes, defenestrando os que julga ineptos e reelegendo os que considera eficazes.
Bastaria esse ponto para distingui-los profundamente dos magistrados e procuradores, que, além do mais, detêm prerrogativas singulares, como a da vitaliciedade e da inamovibilidade.
Mas não é só: não há poder mais aberto à crítica e à investigação da imprensa a mais poderosa arma de controle externo que há; que o Parlamento.
Basta ver o que acontece presentemente, nas devassas promovidas pelas três CPIs, que investigam corrupção entre Congresso e governo Lula, e que resultará em numerosas cassações de mandato - e já provocaram demissões no Ministério de Lula, inclusive de seu mais poderoso auxiliar, o ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Essas cassações decorrerão de pressões da opinião pública, que se impôs e sobrepôs ao espírito corporativista presente em várias instituições incumbida de julgar a si mesma, forçando as punições. É uma forma implacável de controle externo.
Os advogados, por sua vez, não são um Poder da República, mas apenas uma categoria profissional, cujas eventuais faltas submetem-se não apenas a julgamentos corporativos na OAB (que tem sido rigorosa nessas avaliações), mas também ao julgamento do Poder Judiciário, que, em última instância, é o “controle externo” de qualquer corporação e dos demais Poderes da República.
Exatamente porque é a instância que administra e distribui justiça a todos os cidadãos e Poderes da República, possuindo membros vitalícios nomeados, no caso dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal pelo poder político;, é que o Judiciário precisava de alguma forma de controle externo. Esse controle é uma via de mão dupla: garante à sociedade uma Justiça transparente e garante à Justiça a intocabilidade de sua imagem perante o público.
E isso, hoje em dia, é particularmente valioso. Sem credibilidade, as instituições do Estado enfraquecem e perdem eficácia. Basta ver mais uma vez o que acontece neste momento com os Poderes Legislativo e Executivo, paralisados por múltiplas denúncias de corrupção.
Pergunta-se então: e quem controla os membros desse Conselho Nacional de Justiça que exercerá o controle externo sobre o Judiciário? Ora, eles terão mandatos; não serão vitalícios e estarão submetidos à vigilância das próprias instituições que os designarão.
A pluralidade, somada à periodicidade dos mandatos, garante vigilância recíproca. Não há novidade nisso. Os países da União Européia, que estão entre as democracias mais acreditadas do planeta, adotam o controle externo com a maior eficácia.
Aqui, na América do Sul, a Bolívia, desde 1996, exerce controle externo sobre seu Judiciário. Se a Bolívia, que não é exatamente um primor de estabilidade institucional, consegue dar funcionalidade e eficácia àquele instrumento, por que nós não?
O Judiciário, pela natureza de suas atribuições e pelos efeitos políticos e sociais que suas decisões produzem, tem posição vital na vida pública. A ele, são destinados recursos públicos consideráveis, cabendo-lhe fixar as prioridades quanto às suas despesas. O mesmo, claro, acontece com os demais Poderes. A diferença está em que os demais estavam submetidos a alguma espécie de controle. O Judiciário, não.
Havia o controle formal dos tribunais de contas, mas a palavra final, na eventualidade de questionamento de algum ato de seus dirigentes, cabia ao próprio Judiciário. Nem o Ministério Público, nem os advogados dispunham de meios para forçar as corregedorias a não se omitirem quanto às faltas funcionais ou disciplinares principalmente de desembargadores e essas faltas, como a imprensa vinha mostrando não eram raras.
Ao contrário, eram rotineiras as denúncias de desperdício de recursos financeiros. Basta ver o tristemente emblemático TRT de São Paulo, objeto de CPI no Senado Federal há alguns anos.
Gasta-se muitas vezes com o supérfluo, enquanto faltam recursos para ampliação de serviços essenciais, como melhoria das instalações de primeira instância e modernização do equipamento.
Há ainda outras práticas que desvirtuam a função judicial, tais como a lentidão no encaminhamento de processos, descumprimento freqüente de prazos legais e regimentais (sem que os faltosos respondam por isso) etc.
A conduta humana está ainda longe da perfeição. As instituições, criadas e geridas pelos homens, refletem inevitavelmente essas imperfeições; e por isso mesmo precisam de controles recíprocos. O Judiciário não é exceção.
A OAB divergiu de alguns pontos da reforma do Judiciário. Opôs-se, por exemplo, à súmula vinculante, por considerá-la inibidora da independência dos juízes de primeira instância, restringindo suas prerrogativas e obrigando-os a homologar cartorialmente sentenças pré-estabelecidas. Contra ela, continuaremos a nos bater no Congresso Nacional, cenário adequado para dirimir democraticamente conflitos.
Antes de concluir, quero enfatizar que a OAB tem sido zelosa de seu compromisso estatutário, que a compromete com a defesa do Estado democrático de Direito, da Constituição, dos direitos humanos e do aperfeiçoamento do ensino e das instituições jurídicas do país. Cumpre essa missão sem envolver-se no jogo das paixões e interesses político-partidários.
O Brasil é ainda um país sedento de justiça, e cabe a nós, operadores do Direito, imensa parcela de responsabilidade no resgate dessa dívida; que, antes de ser política ou social, é moral, e vem se acumulando por sucessivas gerações.
Nossa expectativa é que a presente crise política, de doloroso conteúdo aético, mobilize a sociedade civil organizada, da qual a OAB é expoente, no sentido de promover as transformações necessárias para que as instituições republicanas sejam saneadas.
Em nosso entender, isso poderá dar-se, mediante convocação de Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, a ser eleita nas próximas eleições gerais, com prazo determinado para cumprir sua missão e a seguir ser dissolvida.
Precisamos reproclamar a República, restituindo-lhe o sentido original de coisa pública, bem comum. Do contrário, democracia continuará sendo mera abstração jurídica e o abismo entre Estado e povo cada vez mais profundo - e perigoso.
Essa a advertência que aqui deixo - e que tenho transmitido às autoridades constituídas. O Brasil carece de Justiça - e, para alcançá-la, não basta reformar o Judiciário. É preciso reformar corações e mentes de sua classe dirigente.”