Artigo: Uma vela a Deus e outra ao Diabo

segunda-feira, 04 de abril de 2005 às 03:21

Brasília, 04/04/2005 - O artigo "Uma vela a Deus e outra ao Diabo" é de autoria do advogado Joelson Dias, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

"Imagine o leitor a potencialidade da combustão quando disputas étnicas e religiosas misturam-se a interesses econômicos, relacionados, por exemplo, com a exploração de petróleo.

Pois foi justamente essa perigosa combinação que levou à explosão da guerra civil contemporânea mais longa da África, que começou no Sudão em 1983, até que governo e rebeldes do sul assinassem um acordo de paz em janeiro de 2005.

O conflito pode ter custado a vida de mais de 2 milhões de pessoas, mortas, além da violência, também de fome e doenças, e forçado umas 4 milhões de outras a deixarem seus lares.

Catalisando a reação, em 2003 eclodiu ainda um outro conflito, em Darfur, na região ocidental daquele País. Ali, a acusação é a de que a árida e empobrecida região está sendo negligenciada pelo governo e negros africanos discriminados em relação aos árabes.

Desde então, estima-se que mais de 2 milhões de pessoas abandonaram seus lares e que entre 100 mil e 300 mil morreram durante a crise em Darfur.

O próprio governo do Sudão e as milícias acusadas de lhe serem adeptas seriam os responsáveis por crimes de guerra contra a população.

Os relatos de ataques aéreos por aeronaves do próprio governo e da investida de milícias nos povoados abatendo indivíduos, estuprando mulheres e pilhando levaram a Organização das Nações Unidas (ONU) a afirmar inclusive que em Darfur estaria se desenrolando a pior crise humanitária do mundo.

Em janeiro de 2005, uma Comissão de Inquérito da própria ONU chegou mesmo a recomendar ao Conselho de Segurança daquela Organização (CS/ONU) que o caso fosse submetido ao Tribunal Penal Internacional (TPI).

Com sede em Haia, na Holanda, o TPI tem por competência julgar as atrocidades como os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e o genocídio, que mais gravemente afetam a comunidade internacional e ameaçam a sua paz, segurança e bem-estar. Noventa e oito países já ratificaram o Estatuto de Roma, que instituiu o TPI.

Por isso não foi com surpresa que o mundo recebeu a notícia de que no último dia 31 de março de 2005 o CS/ONU decidiu aprovar a Resolução 1593 que, dentre outros, remete a situação em Darfur ao Procurador do TPI e enfatiza a obrigação do governo sudanês, das partes envolvidas no conflito e dos Estados Partes do Estatuto de Roma de cooperar plenamente com a Corte no desempenho de seu mandato, incluindo a detenção e a entrega de suspeitos.

Votaram pela adoção da resolução França, Grã-Bretanha, Grécia, Dinamarca, Tanzânia, Benin, Argentina e Romênia, que já ratificaram o Estatuto de Roma, assim como Rússia, Japão e Filipinas. Brasil, Estados Unidos da América (EUA), China e Argélia se abstiveram.

No que diz respeito à remessa da situação em Darfur ao Procurador do TPI, não pode deixar de ser mencionada a impropriedade da fundamentação jurídica inserida nos considerandos da resolução. Afinal, salvo algum outro propósito do CS/ONU não revelado em sua resolução, entende-se que a remessa do caso deveria ter por fundamento o disposto na alínea “b”, do artigo 13, do Estatuto de Roma, segundo o qual o TPI poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes de sua competência se o Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários daqueles delitos.

No particular, mostra-se inapropriada, assim, a referência feita pela resolução ao artigo 16 do Estatuto de Roma, segundo o qual nenhum inquérito ou procedimento poderá ter início ou prosseguir, por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

Como o TPI só tem competência relativamente aos crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto de Roma o próprio CS/ONU cuidou em remeter àquela Corte a situação verificada em Darfur somente a partir de 1o julho 2002.

É bom lembrar que a remessa do caso pelo CS/ONU ao TPI não implica em automática condenação dos acusados e nem mesmo em seu imediato julgamento.

Na verdade, o CS/ONU apenas remeteu ao Procurador uma situação em que existem fortes indícios de ter ocorrido a prática de crimes da competência do TPI.

A partir daí, após examinar a informação de que dispõe, competirá ao Procurador decidir se há ou não fundamento suficiente para a abertura do inquérito e, posteriormente, inclusive para proceder criminalmente.

A alegação do governo sudanês, assim, de que o sistema de justiça daquele País é “suficientemente bom” para processar os acusados certamente será objeto de análise pelo TPI, que atuará apenas se o Estado mostrar-se realmente incapaz para agir.

O outro argumento daquele governo de que inclusive já foram iniciados julgamentos sobre os crimes de Darfur a princípio também não afasta a competência do TPI, que deverá determinar se há mesmo vontade do Estado sudanês de agir sobre o caso, verificando se os processos têm sido conduzidos de maneira independente e imparcial, sem qualquer demora injustificada, e, ainda, se o propósito não é o de apenas subtrair o acusado da sua responsabilidade criminal.

Nenhum empecilho tampouco constitui o fato de o Sudão ainda não ser parte do Estatuto de Roma, quer porque o caso foi remetido ao TPI pelo próprio CS/ONU, quer porque aquele País, mesmo sem ser parte no referido tratado, também poderá consentir em que o Tribunal exerça a sua jurisdição em relação a crime de sua competência.

Uma questão que parece tormentosa, no entanto, e que certamente merecerá detida análise da Assembléia de Estados Partes (AEP) do Estatuto de Roma, diz respeito à decisão do CS/ONU de não arcar com as despesas que o TPI doravante terá com as investigações e julgamentos relacionados à situação em Darfur, em flagrante contrariedade, porém, ao que dispõe a alínea “b”, do artigo 115, do Estatuto de Roma, que obriga aquele Órgão da ONU a financiar os gastos relativos às questões que forem remetidas ao Tribunal.

Não obstante o ineditismo e mesmo relevância histórica dessa sua decisão, ao remeter a situação em Darfur ao TPI, o CS/ONU acendeu uma vela a Deus e outra ao Diabo.

Com efeito, ao mesmo tempo em que determinou pela primeira vez na história a remessa de uma situação tida como ameaçadora da paz e segurança internacionais a um tribunal permanente também constituído no âmbito do sistema das Nações Unidas, o CS/ONU decidiu ainda que, excetuando-se os sudaneses, os nacionais de um País que não seja parte do Estatuto de Roma e que participaram de operações no Sudão estabelecidas ou autorizadas pelo CS/ONU ou pela União Africana (UA) estarão sujeitos única e exclusivamente à jurisdição de seu próprio País.

Na prática, isso implica em que se a resolução do CS/ONU for mesmo seguida à risca, nem o TPI, nem as cortes de qualquer outro País poderão processar, por exemplo, um cidadão estadunidense, ou de qualquer outro Estado que não seja parte do Estatuto de Roma, acusado de ser o autor de crimes de competência do TPI no que diz respeito à situação em Darfur.

No mérito, a questão não parece ser muito diferente daquela enfrentada anteriormente no âmbito do próprio CS/ONU, quando da pretendida renovação pelos EUA dos termos da Resolução 1422, que cuidava da extensão do mandato das forças de paz na Bósnia, para também isentar de responsabilidade os seus integrantes que fossem nacionais de países que não ratificaram o Estatuto de Roma.

Muito embora tenham decidido não se opor especificamente à Resolução 1593, “por causa da necessidade de a comunidade internacional trabalhar junta para acabar com o clima de impunidade em Darfur”, os EUA declararam expressamente na reunião do CS/ONU que continuavam mantendo suas firmes e já de muito tempo objeções ao TPI, inclusive ao entendimento de que podem ser alvos de persecuções politicamente motivadas.

Em sua resolução, o CS/ONU tomou nota ainda da existência de acordos referidos no Artigo 98-2 do Estatuto de Roma, segundo o qual, o TPI pode não dar seguimento à execução de um pedido de entrega por força do qual o Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem em virtude de acordos internacionais à luz dos quais o consentimento do Estado de envio é necessário para que uma pessoa pertencente a esse Estado seja entregue ao Tribunal.

Ainda que o referido texto tenha sido inserido apenas nos considerandos da resolução, não pode passar despercebido o fato de que essa matéria também interessa diretamente aos EUA. Afinal, aquele país tem buscado celebrar acordos bilaterais de não-entrega (“non-surrender”) com vários outros Estados a fim de eximir cidadãos estadunidenses, inclusive estrangeiros contratados por aquele governo, das responsabilidades previstas no Estatuto de Roma e que, por este motivo, podem muito bem resultar na impunidade de autores dos crimes de competência do TPI.

Muito embora em um primeiro momento a abstenção brasileira possa ter causado certa perplexidade, afinal, o Brasil, que também já ratificou o Estatuto de Roma, é um forte defensor do TPI, parece que a decisão de se abster foi mesmo motivada pela recusa em aceitar a proposta dos EUA, como forma de concessão para evitar o veto à resolução, acerca da jurisdição exclusiva sobre os seus nacionais em detrimento da competência do TPI.

De qualquer sorte, como o Estatuto de Roma simplesmente não contempla uma tal isenção, espera-se que o próprio TPI venha a analisar a questão e decidir pela ilegalidade desta pretendida limitação de sua jurisdição.

Afinal, como lembrou o embaixador brasileiro na ONU, Ronaldo Mota Sardenberg, que inclusive presidiu a reunião do CS/ONU em que a Resolução 1593 foi adotada, existem limites para as responsabilidades do próprio Conselho vis-à-vis os instrumentos internacionais.

Somente o tempo agora é que permitirá avaliar, como aliás também cogitou o embaixador brasileiro na ONU, se não foi muito alto o preço pago para se conseguir que os EUA apenas se abstivessem ao invés de vetar a Resolução, como antes inclusive ameaçavam.

Com a adoção da resolução, apenas depois de o próprio TPI firmar em definitivo o alcance de sua jurisdição, é que então realmente se saberá se, pelos menos em Darfur, foi mesmo o CS/ONU que dobrou os EUA e sua “firme objeção” ao Tribunal.

Porque pode muito bem ter ocorrido justamente o contrário, tendo os EUA aproveitado-se da grave situação humanitária e de violações de direitos humanos no Sudão e, por conseguinte, da necessária remessa do caso ao TPI, para, sob a ameaça de vetar a resolução, impor à comunidade internacional a isenção da responsabilidade criminal de seus nacionais perante aquela Corte, bem como de todos aqueles outros Estados que não ratificaram o Estatuto de Roma.

Uma chama por enquanto alimenta e mantém acesa ambas as velas. Tamanha claridade pode comprometer a efetiva universalização da justiça criminal".