Editorial: Vigilância democrática

quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005 às 07:30

Brasília, 03/02/2005 – O editorial “Vigilância democrática” foi publicado na edição de hoje (03) do jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul:

“Editada com discrição, uma portaria do Ministério do Planejamento poderia ter o destino de outros tantos atos da burocracia que apenas complicam a vida dos cidadãos e, com o tempo, são esquecidos. Não é o que deve acontecer com a decisão do ministério que obriga o IBGE a encaminhar ao governo os resultados de suas pesquisas estruturais 48 horas antes de sua divulgação. O viés autoritário da portaria provocou a reação imediata da Ordem dos Advogados do Brasil, que a identificou entre os muitos despachos que o Executivo publica no Diário Oficial. A partir daí, a imprensa e outras entidades independentes passaram a abordar aspectos da medida que são no mínimo inquietantes.

As chamadas pesquisas estruturais são amplas amostragens que expressam as condições da população em algum momento. São realizadas para que a sociedade tenha acesso a informações que a retratam e para que também o governo oriente as políticas públicas. Pela portaria, o Ministério do Planejamento terá acesso a estes dados dois dias antes da divulgação pela imprensa, uma inovação no Brasil em relação a estudos deste tipo.

Mesmo que o ministério já tenha tentado explicar que se trata apenas de uma medida administrativa, não há argumentos convincentes. Há indícios de que a portaria tenha sido editada em decorrência da repercussão de uma pesquisa recente, que revela um maior número de brasileiros obesos no confronto com os que se alimentam mal ou passam fome. Teme-se que, com o pretexto de impedir novas controvérsias, o governo caia na tentação de controlar o que pode ou não ser divulgado. E suspeita-se ainda que as autoridades possam ser seduzidas pela idéia de que pesquisas consideradas desfavoráveis, conhecidas com antecipação, possam ter repercussão amenizada com a divulgação de informações oficiais que a elas se contraponham quando da veiculação na imprensa.

Que intenção, afinal, terá o governo ao dispor por antecipação de informações que interessam a todos e não são confidenciais? Independentemente de qualquer resposta, a portaria carrega, na origem, um caráter autoritário. Seu molde é o mesmo que gerou as propostas de criação do Conselho Federal de Jornalismo, para controlar os meios de comunicação, ou da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), que - pelo projeto original - imporia normas absurdas às emissoras de TV, como a que as obrigava a exibir gratuitamente três minutos por dia de comerciais de filmes nacionais.

As entidades preocupadas com a recente portaria sabem, como boa parte da população brasileira, que a interferência indevida do governo em pesquisas, para manipulá-las ou impedir sua divulgação - como ocorreu nos anos 70, sob regime militar - , é prática que nunca deve ser esquecida, para que nunca mais se repita. Se a portaria for mantida, o Executivo estará contribuindo para que as pesquisas estejam a partir de agora sob suspeita. Cabe ao governo preservar a credibilidade do IBGE e de seus quadros - sem descuidar da própria reputação.

Amostragem

Fazem parte das pesquisas estruturais do IBGE questões sociais e econômicas que abordam do padrão de vida à escolaridade da população brasileira”.