Editorial: Cacoete de censor

terça-feira, 01 de fevereiro de 2005 às 07:30

Brasília, 01/02/2005 – O editorial “Cacoete de censor” foi publicado na edição de hoje (1º) do jornal O Estado de S. Paulo (SP):

“Talvez seja um exagero atribuir a desígnios censórios a portaria que determina que os indicadores estruturais produzidos pelos técnicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sejam submetidos, 48 horas antes da divulgação, ao Ministério do Planejamento. Pode ser que a providência resulte do afã de desagravar o chefe - em dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva contestou a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), que concluía pela existência de obesos em maior número que subnutridos no País - e não se destine a impedir a divulgação de estatísticas que desabonem o governo, do qual o IBGE é subordinado.

Ainda que as intenções do signatário da portaria, o ministro interino do Planejamento, Nelson Machado, não sejam de restringir a liberdade de pesquisa de uma instituição com credibilidade raramente alcançada por um órgão público, ela não podia ser mais desastrada, sob qualquer ponto de vista. Primeiramente, intenções à parte, é óbvio o seu vezo de intolerância. No rastro de iniciativas estapafúrdias - como o patrocínio à pretensão da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) de submeter a imprensa ao crivo ideológico dos militantes que a comandam no malsinado Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e a também autoritária Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), de que o governo se viu obrigado a se livrar -, ela reflete um indisfarçável autoritarismo atávico que, de repente, se manifesta em cacoetes insopitáveis. Como não há notícia de erros de cálculo semelhantes que reduzam o poder de intervenção do Estado (e da turma que está no controle da máquina pública) e facilitem a vigilância da sociedade, a medida lembra, mais uma vez, o tique nervoso que fazia o braço do soturno Dr. Strangelove (Dr. Fantástico) se alçar, no clássico filme pacifista de Stanley Kubrick. Da mesma forma como o protagonista do filme se via obrigado a baixar o braço com a outra mão para evitar a repetição da saudação nazista, o burocrata, cuja incapacidade para exercer o importante cargo se revela na longa interinidade e na portaria absurda, exibe a dificuldade de articular uma defesa digna de nota à barreira de repúdio que contra ela se ergueu.

Era de esperar um ataque da oposição e ele veio na voz do presidente nacional do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), para quem a medida serve para "Lula tentar ganhar tempo e acionar a máquina do engodo publicitário". Endossando críticas feitas pela Fenaj, insuspeita de oposicionismo, e pela Associação Nacional dos Jornais (ANJ), o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, divulgou nota oficial dizendo que "o IBGE não é para propaganda de governo". E o presidente nacional do PT, José Genoino, indicou a única via pela qual o governo se pode livrar da mancada cometida por um ministro que parece ter resolvido tornar marcante sua gestão-tampão bajulando o chefe: "Isso tem de ser imediatamente revisto."

A indignação do prócer petista tem sólidas razões enraizadas no pragmatismo político. O ato infeliz do burocrata imprudente cria constrangimentos desnecessários para o chefe da Nação. Em primeiro lugar, lembra um momento infeliz que Lula talvez prefira manter no esquecimento, qual seja o improviso infeliz no qual enfiou o IBGE no mesmo balaio dos institutos de pesquisa de opinião pública, como o Ibope. E também porque outro órgão subordinado ao governo federal acaba de confirmar o que qualquer observador isento poderia fazê-lo de forma empírica numa simples visita a uma favela: que há dez vezes mais brasileiros com excesso de peso e obesos que subnutridos - 38,8 milhões de adultos contra 3,8 milhões, segundo o IBGE. Dados do Ministério da Saúde divulgados no fim de semana constatam terem morrido, em 2003, 447 mil brasileiros vitimados por doenças crônicas agravadas pelo excesso de peso, como diabetes, hipertensão, câncer, enfarte e acidente vascular cerebral. Enquanto isso, a desnutrição, a anemia e moléstias infecciosas, como pneumonia e diarréia, foram responsáveis por 54 mil óbitos no mesmo período.

Como o peso médio do brasileiro não baixou nem a fome cresceu tanto no governo Lula e este está sendo convidado a ser garoto-propaganda de uma campanha do Ministério da Saúde para incentivar a prática de exercícios físicos e estimular dieta saudável, o melhor a fazer com a portaria é revogá-la”.