Conselheiro da OAB culpa governo por aumento da violência

segunda-feira, 03 de janeiro de 2005 às 08:00

Brasília, 03/01/2005 – O conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e advogado criminalista no Rio Grande do Sul, Cezar Roberto Bitencourt, responsabilizou o governo pelo crescimento exacerbado dos índices de violência no Brasil. “A verdade é que os nossos governantes deixaram chegar a este nível de violência pela omissão, pela negligência, pela falta de políticas sociais. Com isso, chegamos a esse status de insuportabilidade”, afirmou o conselheiro. “Não são apenas as grandes capitais que estão sofrendo com a chaga da violência, também as cidades pequenas, as do interior, estão assim. É realmente dramático, é preocupante e alguma coisa tem de ser feita”.

Durante entrevista, Cezar Bitencourt cobrou uma ação mais efetiva do poder público, um orçamento específico para reduzir a violência e descartou a abertura de novos presídios como saída para o problema. Para o criminalista, os efeitos da prisão são graves. “Na prisão, a pessoa ganha um novo aprendizado, afrouxa os seus freios morais, aprende a sobreviver na prisão, aprende a delinqüir. Ele acaba se destruindo moralmente”.

O conselheiro federal da OAB não responsabiliza o Judiciário pelo crescimento dos números da violência, pois poucos crimes acabam chegando, de fato, às barras da Justiça. Para ele, é a máquina, todo o sistema repressivo estatal que não funciona. Segundo Bitencourt, no ano passado houve 550 mil ocorrências policiais no Rio de Janeiro. Dessas 550 mil ocorrências, 178 mil inquéritos policiais foram instaurados e apenas duas mil denúncias foram efetivadas, ou seja, viraram processos criminais que chegaram a juízo. “Então, eu acredito que o problema está antes do Judiciário, muito antes. O Judiciário não pode fazer milagre, só vai julgar aquilo que levam até ele”.

Segundo Cezar Bitencourt, as ações não chegam ao Judiciário porque não há investimento em infra-estrutura, no sistema penitenciário, em segurança pública e, por fim, não há orçamento, não se investe em gente ou em tecnologia.

Segue a íntegra da entrevista concedida pelo conselheiro federal da OAB, Cezar Bitencourt:

P – Como o senhor avalia a chaga da violência no Brasil, que nos últimos anos não tem afetado somente o Rio de Janeiro mas até mesmo as cidades do interior?
R – Com muita preocupação. O problema da violência não vem de hoje, é antigo. Entendo que há um grande responsável por essa violência que impera no país, que se chama “poder central”. O poder público não investe como deveria para sanar problemas de falta de segurança. Na realidade, ainda se confunde crime organizado com crime massificado. Fala-se em crime organizado quando, na realidade, estamos preocupados é com o crime de massa, esse crime violento das ruas que tolhe a nossa liberdade, que tolhe a vida das nossas famílias. Então, esse tipo de crime está longe de ser crime organizado. É o típico crime desorganizado. Eu digo sempre: como se pode falar tanto em crime organizado? E porque que o crime seria organizado, num país tão desorganizado como o nosso? Então eu entendo que a resposta está em começar a combater o crime desorganizado. Este já seria um bom começo, uma boa política.

P – Na sua opinião o governo deve ser responsabilizado pelos índices de violência tão altos?
R – A verdade é que os nossos governantes deixaram chegar a este nível de violência pela omissão, pela negligência, pela falta de políticas sociais. Com isso, chegamos a esse status de insuportabilidade. Essa é a realidade. Não são apenas as grandes capitais que estão sofrendo com a chaga da violência, também as cidades pequenas, as do interior, estão assim. É realmente dramático, é preocupante e alguma coisa tem de ser feita. Mas eu entendo que não se trata de aumentar as penas. Não é endurecendo o regime e construindo prisões que vamos resolver o problema da violência. Nós precisamos é investir no policiamento ostensivo, precisamos da presença e da visibilidade da segurança pública, da Polícia Militar nas ruas. Enquanto não se tomar essa consciência, nós vamos continuar tendo essas dificuldades.

P – Como o senhor acha que deveria ser a ação do governo, num sentido mais efetivo? Por exemplo, o senhor acha que o governo federal e os governos estaduais têm tido um bom relacionamento no tocante à segurança pública?
R – Não, não têm e nunca tiveram. Faz-se muito discurso, retórica, se promete muito e sempre se coloca sempre esse assunto em plataformas de campanha dos governantes. Só que na hora da prática, na hora da execução, não há orçamento para cumprir com o que se prometeu. E por quê? Porque preso não vota, porque o sistema penitenciário não dá eleição para ninguém. Agora, o que os políticos ainda não se deram conta é que essa violência tamanha, essa insegurança enorme também tira voto. Não se pode mais fazer política de ocasião e reformas pontuais, como se tem feito. Tem que existir um projeto de investimento a médio e longo prazos, tem que haver orçamento certo destinado para isso.

P – E onde estão as falhas em termos de orçamento?
R – O governo não tem orçamento adequado, não faz as previsões orçamentárias adequadas e, quando faz, é puramente ilusório porque acaba fazendo cortes nesse mesmo orçamento. As previsões orçamentárias não se concretizam, não vão para as suas destinações. Além disso, os Estados estão falidos. Também não têm investimentos, não fazem previsões orçamentárias e padecem do mesmo erro, mesma negligência, da omissão do governo federal. Então, nós temos dificuldades imensas de operacionalizar esse problema da violência. Não se faz nada em prol da segurança pública e as pessoas vão se acostumando com a violência, com a insegurança, com a mortandade, com a necessidade de se refugiar, de deixar de se divertir e de ter perdas. E essas perdas são diárias, a mortandade é muito grande. As pessoas não podem sair nas ruas, as mulheres não podem mais andar pelas calçadas, você não pode ter teus filhos por aí, não pode mais ir às praças. Aliás, hoje não há mais segurança sequer no teu condomínio fechado porque já existem quadrilhas especializadas em assalto a esses condomínios. Então, acredito que realmente estamos chegando a um absurdo, ao caos, no fundo do poço.

P – Mas o senhor acredita que aumentar o número de presídios não é a melhor saída?
R – Alguma coisa precisa ser feita com urgência, mas repito, a saída não é aumentar penas, não é imaginar que se pode botar toda a população na cadeia. A quantidade de delinqüentes, marginais e pessoas infratoras é muito grande. Mas é preciso reservar essas prisões exatamente para as pessoas perigosas, para os delinqüentes cuja liberdade inviabiliza a nossa liberdade, para os autores de crimes graves. E nós temos que buscar para as infrações menores, as penas alternativas. Temos de investir e incentivar as penas alternativas, exatamente porque não temos estrutura e nem orçamento para botar tanta gente na cadeia.

P – Como o senhor enxerga o atual sistema prisional brasileiro e as Febens? Acha possível um preso sair de lá regenerado?
R – Eu sou um dos maiores críticos da pena de prisão porque todos sabem que as cadeias e as Febens são fábricas de delinqüentes, que é impossível alguém sair da prisão melhor do que entrou. Quer dizer, os efeitos da prisão são muito graves. Você transforma um indivíduo inocente, alguém que cometeu um erro leve, em um criminoso em potencial. Na prisão, a pessoa ganha um novo aprendizado, afrouxa os seus freios morais, aprende a sobreviver na prisão, aprende a delinqüir. Ele acaba se destruindo moralmente. A violência sexual, a violência sanitária que os presos sofrem é muito grande, além da perda de identidade porque lá você vira um número, uma coisa, você é tratado como um objeto. Aliás, você vira animal para sobreviver numa selva de animais. Então, realmente, a prisão deve ser a última instância, só se pode pensar em prisão quando não houver outra forma de punir, quando for inevitável. Agora, se se mandar levas e levas de pessoas pra lá pelo cometimento de pequenas infrações, estaremos apenas piorando essas pessoas, porque elas sairão de lá pior que entraram. Vamos chegar ao ponto, em 15, 20 anos, em que teremos metade da população marginal. Quer dizer, as pessoas precisam ter essa noção: a prisão não recupera ninguém. Destrói moralmente, afrouxa os freios inibitórios, transforma o preso moralmente.

P – O que o senhor acha da relação Judiciário-violência? Como o Judiciário se encaixa nesse pólo, ao lado do Executivo e Legislativo?
R – Eu entendo que não se pode culpar o Judiciário. É muito simples, é muito fácil lhe atribuir a responsabilidade. É a máquina, todo o sistema repressivo estatal que não funciona. No ano passado, houve 550 mil ocorrências policiais no Rio de Janeiro. Dessas 550 mil ocorrências, 178 mil inquéritos policiais foram instaurados e apenas duas mil denúncias foram efetivadas, ou seja, viraram processos criminais que chegaram a juízo. Isso é brincadeira, isso é piada. Parece que nós vivemos numa Suíça brasileira e nós sabemos bem o caos que é o Rio de Janeiro. Então, eu acredito que o problema está antes do Judiciário, muito antes do Judiciário. O Judiciário não pode fazer milagre, só vai julgar aquilo que levam a ele. Como é que eu vou responsabilizar o Poder Judiciário? Sabemos que a nossa Justiça é lenta, deficiente, tem problemas estruturais, conjunturais, de material e humano, mas isso é apenas a ponta do iceberg. Nós temos coisas muito mais sérias antes do Judiciário.

P – Mas por que essas ações não chegam até o Judiciário?
R – Porque nós não temos investimento na infra-estrutura, no sistema penitenciário, em segurança pública. Não há orçamento, não se investe em gente, não se tem estrutura, não há policiamento e nem tecnologia. Então, como é que você vai fazer isso funcionar? Empiricamente? Não é possível. Falta realmente investimento. Como é que está o policiamento nas ruas, como está o policiamento ostensivo? Simplesmente não existe. O criminoso assalta num lugar, vai passando de bairro em bairro, atravessa uma cidade inteira e não encontra a polícia. O marginal sabe que está impune, sabe que pode continuar delinqüindo e nada acontecerá a ele. Então, é preciso aquilo que eu já falei anteriormente: de visibilidade de segurança. Eu preciso saber que se eu praticar um crime aqui, ali na frente eu serei preso porque os agentes de segurança estão por perto. Caso contrário, não há como coibir a violência que aí está. Tem que haver estrutura, orçamento, tem de haver financiamento. Discurso não resolve nada. Aumentar pena e criar presídios, muito menos.