Artigo: Educação jurídica e formação profissional

quarta-feira, 08 de agosto de 2001 às 12:48

por José Geraldo de Sousa Junior

O final da década de 1990, coincidindo com a mudança de milênio, assinalou, entre muitos eventos de grande significação, o debate acerca da educação em geral e também do ensino superior para o século XXI.

Sob a perspectiva de enfrentar os desafios do futuro e de determinar, nesse campo, as principais tensões a ultrapassar, importantes estudos foram realizados no período, dentre os quais, merece relevo, o importante Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, sob o título Educação – Um tesouro a descobrir, que se tornou conhecido como o Relatório Jacques Delors.

Do Relatório Delors desejo extrair, dentre os seus importantes achados, a idéia apropriável à reflexão aqui desenvolvida sobre as condições de transição entre educação e mundo do trabalho e às exigências de novas formas de certificação que levem em conta o conjunto das competências adquiridas no desenvolvimento da educação ao longo de toda a vida.

As idéias do Relatório Jacques Delors aliás, se tornaram centrais à organização do maior evento do final do século XX, a Conferência Mundial sobre o Ensino Superior – Tendências da Educação Superior para o Século XXI, realizada em Paris, de 5 a 9 de outubro de 1998, depois de cinco anos de preparação, sob coordenação da UNESCO.

Também nesse evento, de abrangência sem precedentes e com participação plural que não negligenciou nenhum protagonismo, estando presentes organizações internacionais de estudantes, predominou o entendimento de que no alvorecer do século XXI, sempre que o objeto de discussão sejam os desafios da inovação no ensino superior, as questões relativas às conexões entre este grau de educação universitária e o mundo do trabalho ocupam o centro do debate.

Das ricas e sugestivas análises, a partir desse centro de discussão, não é difícil imaginar o quanto elas se dirigem à necessidade de pensar-se transformações do papel dos estabelecimentos de ensino superior e das condições nas quais se desenvolve o ensino superior em face dos esforços de reorganização de suas conexões com o mundo do trabalho a partir das profissões e carreiras que formam.

Contemporaneamente a essa discussão internacional, também no Brasil se travou um impressionante movimento de requalificação do ensino superior cujo eixo se apoiou em dois suportes principais: a elaboração de novas diretrizes curriculares e a avaliação do sistema. Neste processo, a área jurídica foi, não só pioneira, mas paradigmática. Antes mesmo da edição da lei de diretrizes e bases da educação ou do lançamento do programa de avaliação circunscrito ao exame nacional de cursos (“Provão”), o mundo jurídico vivenciou um forte movimento nesse sentido, conduzido pelo protagonismo associado das agências institucionais de fomento (SESu, INEP), do Conselho Federal da OAB e dos intelectuais e pensadores do campo.

Em 1991 a OAB cria a sua Comissão de Ensino Jurídico que realiza, ao longo da década, um esforço de qualificação do ensino jurídico que vai reunir o mais importante acervo de reflexão sobre o tema constituído por sua Coleção OAB Ensino Jurídico, com seis volumes publicados, o último dos quais, OAB Recomenda: Um Retrato dos Cursos Jurídicos, traduz, como o título indica, um sistema de recomendação dos cursos de qualidade instalados no País.

Em senda própria ou, como freqüentemente vem ocorrendo, em associação, esses esforços conjuntos, participativos, colegiados, abriram perspectivas para o estabelecimento de um espaço público de interlocução e de formação de consensos possíveis que se concretizaram na redefinição das diretrizes curriculares para o ensino jurídico, afinal, aprovadas pelo Ministro da Educação em 1994, fazendo das vezes do Conselho Nacional de Educação criado em substituição ao Conselho Federal de Educação mas então ainda não instalado, para vigorar completamente a partir de 1997.

Em síntese, a combinação desses elementos, concretizou uma aposta razoável na capacidade de realização pelas instituições universitárias e de ensino superior, dos valores sociais da educação, ao menos por aquelas que têm compromissos éticos e com a boa técnica jurídica para a salvaguarda pedagógica de efetivação da cidadania e da dignidade profissional constitutivas das carreiras jurídicas. Em sintonia com o debate internacional, esses elementos delineam o perfil profissional, em última análise, configurado na avaliação conduzida pelo exame nacional de cursos (“provão”), até a sua forma atual definida na portaria nº 007/01: a) formação humanistica, técnico-jurídica e prática indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais; b) senso ético-profissional, associado à responsabilidade social, com a compreensão da causalidade e finalidade das normas jurídicas e da busca constante da libertação do homem e do aprimoramento da sociedade; c) apreensão, transmissão crítica e produção criativa do Direito, aliadas ao raciocínio lógico e à consciência da necessidade de permanente atualização, não só técnica, mas como processo de educação ao longo da vida; d) visão atualizada de mundo e, em particular, consciência solidária dos problemas de seu tempo e de seu espaço.

Ora, essa aposta, resultado de um processo corrente cujos frutos começam a ser colhidos, permitindo distinções e seletividades expressivas, não significa circunscrever a educação a um modelo imodificável ou exclusivo ou ao reconhecimento de que uma meta atingida se torne inultrapassável. Em sugestivo trabalho sobre “As Profissões do Futuro” (Publifolha, São Paulo, 2000) Gilson Schwartz dá a medida dessa condição de mobilidade. Se nenhuma solução – diz ele - é capaz de tornar os mercados, as empresas e nossas vidas realmente estáveis, se a cada procedimento que parece uma solução acaba-se por criar mais problemas e novas situações, chegamos ao coração da visão contemporânea da nova economia: sobrevive quem for capaz de levar adiante o conhecimento, sempre incompleto, a cada nova situação, a cada solução temporária. De fato, o Relatório Jacques Delors estabelecera com alguma ponderação que as universidades já não têm o monopólio do ensino superior e que os sistemas nacionais de ensino superior são tão variados e complexos, no que se refere a estruturas, programas, público que os freqüenta e financiamento, que se torna difícil classificá-los em categorias distintas. Na Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, os estudantes e, notadamente, os estudantes de Direito, ao discorrerem sobre estratégias de mudança, aludiram ao desejo expresso de uma maior flexibilidade na vida profissional, em resposta a um ambiente que evolui permanentemente, sugerindo reforçar os laços entre os estabelecimentos de ensino superior e o mundo do trabalho, graças principalmente a seus serviços de orientação profissional, ao diálogo permanente com os empregadores e à ligação mais estreita entre os estudos e os contextos profissionais.

Estamos, pois, em pleno processo de uma boa reforma. Como lembra Delors, demasiadas reformas em cascata acabam por matar a reforma, pois não dão ao sistema o tempo necessário para se impregnar do novo espírito, nem para pôr todos os atores à altura de nela participarem. Então, por que abrir a discussão para propostas de modificação do curso de graduação em Direito, como faz precisamente a OAB, por sugestão de seu Presidente nacional, ela que é uma das responsáveis pela reforma em curso?

Exatamente para não perder-se de vista uma dimensão da reforma que não foi ainda ponderada. Para que se insira como item de pauta da continuidade do trabalho de reflexão que é parte do protagonismo da OAB, e que é conduzido nesse campo, por sua Comissão de Ensino Jurídico, este aspecto relevante, prospectivo e proativo, para usar a linguagem do debate internacional conduzido pela UNESCO na Conferência Mundial sobre Ensino Superior, pondo em relevo este aspecto específico de sua problemática atual: o de se ver obrigado nesse contexto a clarear seus objetivos fundamentais, e, por exemplo, encontrar um equilíbrio entre a busca do saber e a prestação de serviços à sociedade, entre privilegiar a formação de competências genéricas e fornecer saberes específicos, entre responder às demandas expressas diretamente pelo sistema de emprego e formar o mundo do trabalho segundo uma conduta prospectiva e proativa. (Anais, pág. 319).

A proposta em discussão, gerada no âmbito da OAB por inspiração de seu Presidente, começou a ser discutida no espaço da Comissão de Ensino Jurídico para ser posteriormente incluída na agenda dos seminários nacionais que organiza. Nos termos expostos pelo membro da Comissão, Professor Milton Paulo de Carvalho que é o seu Secretário, a proposta nem chega a ser uma idéia nova, de formação específica de aplicadores do direito. Ela procede do que ficou conhecido como “Declaração da Sorbonne”, por meio da qual os países da União Européia assentaram a “harmonização da estrutura dos sistemas de ensino superior”, consistente em manter um primeiro nível, seguido de um segundo nível com a finalidade de propiciar formação cultural e profissional correspondente a uma especialização.

Na proposta ainda em discussão preliminar no âmbito da Comissão de Ensino Jurídico, ao primeiro ciclo de cinco anos mínimos atualmente previstos nas diretrizes curriculares, dar-se-á o acréscimo de dois anos mínimos, para um segundo ciclo destinado à formação de magistrados, promotores de justiça e advogados a ser realizado em universidades ou centros universitários oficialmente reconhecidos se satisfeitos os respectivos requisitos legais.

Trata-se, conforme assinalei em outro lugar (“Advogado: Credibilidade Profissional e Confiança na sua Instituição”, in “A OAB Vista pelos Advogados. Pesquisa de Avaliação da Imagem Institucional da OAB”, Conselho Federal da OAB, Brasília, 2000), de enfrentar a demanda reiteradamente renovada pelas organizações profissionais da advocacia, do ministério público e da magistratura, reveladoras da persistência de uma decalagem ainda não superada entre o grau retórico e abstrato trazido da formação acadêmica pelas características metodológicas dos cursos jurídicos e as exigências práticas do exercício profissional, criando um vazio que se manifesta como rápida desatualização, inabilidade, perda de confiança epistemológica e disfunção social que restringem o próprio desempenho.

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José Geraldo de Sousa Junior é Diretor da Faculdade de Direito da UnB; Ex-membro da Comissão de Especialistas de Ensino de Direito, 1993-1995 (MEC-SESu); Membro da Comissão de Direito do Exame Nacional de Cursos (MEC-INEP); Membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB.

Agosto, 2001