OAB: quem fez CPI do Futebol deve apurar mortes na ditadura

quarta-feira, 20 de outubro de 2004 às 11:02

Brasília, 20/10/2004 - “O Congresso Nacional, que investiga assuntos tão menos relevantes e já fez até CPI do Futebol, deveria esclarecer este assunto das mortes obscuras do período da ditadura, que é grave e ceifou vidas e inteligências preciosas que poderiam ajudar na construção da história do país”. Com essa afirmação, o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, defendeu hoje (20) a investigação pela Câmara dos Deputados dos desaparecimentos e mortes ocorridas durante o regime militar, entre elas a do jornalista Vladimir Herzog, depois de prestar depoimento ao Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi).

Em entrevista concedida hoje, Busato afirmou que ficou surpreso com o retorno à pauta do dia de um tema relacionado ao período obscuro da história do Brasil e afirmou que os casos devem continuar sendo investigados. “Isso prova que existe ainda muita coisa não totalmente identificada. Ao que parece, existem memórias bem guardadas de uma realidade bem diferente daquela que foi contada à Nação”, disse ele. Além da Câmara dos Deputados, Busato cita entre os possuidores de instrumentos capazes de fazer tais investigações o Ministério da Justiça, o Ministério Público e até mesmo a organização civil brasileira.

O presidente da OAB lembrou que o Estado Democrático de Direito está perfeitamente estabelecido e solidificado no País. “O Brasil não vive mais clima nenhum de revanchismo”, afirmou ele. “E no Estado Democrático de Direito nada obsta que se faça as investigações do passado para verificar o restabelecimento da justiça social no País”.

Segue a íntegra da entrevista concedida pelo presidente nacional da OAB:

P - De que maneira a OAB Nacional vem acompanhando este episódio?
R - A Ordem dos Advogados do Brasil, como toda a sociedade, ficou surpresa com a divulgação dessas fotos altamente comprometedoras de um período obscuro da história do Brasil, que viveu um passado trágico. Essas fotos trouxeram de volta ao nosso convívio todo aquele clima de revolta que existiu por ocasião da quebra de direitos civis do Estado Democrático de Direito no período da ditadura militar.

P - O que pode ser feito com relação a este caso? É possível voltar a investigar e esclarecer de vez o caso Vladimir Herzog e outros casos obscuros da época da ditadura?
R - Os casos devem continuar sendo investigados. Eu acredito que as autoridades tanto civis quanto militares brasileiras tiveram maturidade com relação a este episódio. Acho que, além daquele primeiro momento de revolta e daquela situação horrorosa que aconteceu no Brasil, de outro lado houve um sentimento de maturidade para interpretar o fato e se procurar uma solução. A nota oficial do Exército, no primeiro momento, foi completamente fora da realidade, principalmente quando fala em revanchismo. O Brasil não vive mais clima nenhum de revanchismo. O Estado Democrático de Direito está perfeitamente estabelecido e solidificado. Ontem, o Exército, por meio do general Francisco Rocha de Albuquerque, soltou outra nota para tentar colocar as coisas em ordem, afirmando que este fato foi determinante para a extinção do antigo regime e a volta do Estado Democrático de Direito. E no Estado Democrático de Direito nada obsta que se faça as investigações do passado para se verificar o restabelecimento da justiça social no País.

P - Como seria uma investigação dessa grandeza? Caberia ao Congresso por meio de uma comissão Especial, ao Judiciário, às organizações civis? A quem caberia uma investigação desse porte?
R - Temos vários instrumentos que poderiam ser acionados. Temos, dentro do Ministério da Justiça instrumentos e meios adequados para isso. O Ministério Público poderia participar e, tenho certeza, a organização civil brasileira também estaria à disposição. Em suma, temos diversos instrumentos que poderiam ser acionados para que houvesse um aprofundamento nessa questão, visando não o revanchismo mas fazer justiça com relação a um passado que, felizmente, está extinto e não voltará a vigorar no Brasil.

P - Há quem diga que a Câmara poderia voltar a investigar esses casos. Como o senhor avalia essa possibilidade?
R - Por que não? O Congresso Nacional, que investiga assuntos tão menos relevantes e já fez até CPI do Futebol, deveria esclarecer este assunto das mortes obscuras do período da ditadura, que é grave e ceifou vidas e inteligências preciosas que poderiam ajudar na construção da história do país. Acredito que o Congresso poderia perfeitamente, como casa representativa do povo, participar desse levantamento de posições.

P - Esses casos, na avaliação do senhor, estão mau resolvidos? A versão para o caso Vladimir Herzog, por exemplo, é a de que ele teria se enforcado. Passados 30 anos, o senhor acredita que é possível esclarecer os fatos e colocar esse e outros casos em sua ordem correta?
R - Aí reside a surpresa dessa reportagem que começou pelo Correio Braziliense, com a apresentação dessas fotos inéditas. Pensava-se que este assunto estava resolvido e se mostrou que não está, que existiam documentos internos comprovando efetivamente que a realidade é diferente da que foi divulgada na época do regime militar. Isso prova que existe ainda muita coisa não totalmente identificada. Ao que parece, existem memórias bem guardadas de uma realidade bem diferente daquela que foi contada à nação.

P - Bem, não há mais caminho para o retrocesso, não é doutor Busato?
R - Não há mais clima nenhum para isso. O Brasil está completamente redemocratizado, suas instituições são sólidas. Exemplo disso, me parece, foi a atitude do presidente da República de pedir explicação a seu ministro da Defesa quanto à nota divulgada pelo Exército e este, por sua vez, pedir satisfação a seus subalternos. Depois vem o comandante do Exército reconhecer de público que a posição manifestada na primeira nota oficial não condiz com a realidade e que o Exército reafirma os compromissos de fortalecimento da democracia brasileira. Eu acho que isso tudo provou que a democracia está consolidada no Brasil.

P - A nota em que o Exército se retrata quanto ao teor publicado na primeira nota é esclarecedora, na sua opinião? Ela coloca realmente tudo na sua ordem devida?
R - Acredito que sim porque o general reconhece que o caso Vladimir Herzog foi emblemático e motivador do afastamento de antigos comandantes militares. Foi ali que começou o processo de redemocratização do país. O presidente que à época conduzia a OAB, Raimundo Faoro, foi de grande brilhantismo quando disse ao presidente Geisel, naquela ocasião, que se ele quisesse instituir a democracia deveria restabelecer o habeas corpus porque, com esse instrumento, não haveria mais comandante que tivesse coragem de fazer tortura nos quartéis. Foi naquele momento, do suicídio entre aspas de Vladimir Herzog e da restituição do habeas corpus, que começou realmente o processo de redemocratização do Brasil. Os casos, como o de Herzog, passaram a deixar de existir e todos sabem que casos como esse eram cotidianos, praticamente diários dentro das penitenciárias. Pessoas eram levadas para prestar depoimentos e supostamente se suicidavam ou nunca mais apareciam. Neste ponto, a OAB mostrou que o restabelecimento do habeas corpus seria, efetivamente, o início da democratização brasileira, tão esperada. A partir deste momento, o Brasil voltou a colocar a locomotiva nos trilhos.