Artigo: Democracia ameaçada

quinta-feira, 14 de outubro de 2004 às 10:46

Brasília, 14/10/2004 - O artigo “Democracia ameaçada”, de autoria do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, foi publicado na edição de hoje (14) do jornal Correio Braziliense.

“O Estado democrático de direito é a grande vítima da paranóia antiterrorismo que se instalou em todo o mundo a partir do fatídico 11 de setembro de 2001. Essa a conclusão de recente mesa redonda internacional de presidentes de ordens de advogados de mais de 50 países, em Londres, patrocinada pela Law Society of England and Wales, da qual participei como presidente da OAB e também representando a Ordem dos Advogados de Portugal.

A pretexto de combater o terror, conquistas fundamentais da civilização humana, como liberdade de expressão, direito de ir e vir, liberdade religiosa e condenação judicial mediante o devido processo legal, com amplo direito de defesa, estão sendo suprimidas ou ameaçadas de supressão em países historicamente modelos da democracia e do culto aos direitos humanos. Estados Unidos, por exemplo. Aonde tudo isso nos levará é a inquietante indagação que resultou daqueles debates. Quero aqui resumir o que de mais espantoso ouvi a respeito nos painéis de que participei, entre os dias 29 e 30 de setembro passado. Destacada pela Law Society para atender aos 13 ingleses detidos sem acusação formal ou processo legal na fortaleza norte-americana da baía de Guantânamo, a advogada inglesa Louisie Christian descreveu uma situação absurda, que agride a dignidade humana e viola até mesmo a Lei de Proteção aos Animais.

Nem mesmo a poderosa imaginação de um Dante Alighieri, ao conceber o seu Inferno, na Divina Comédia, poderia supor o que se passa em Guantânamo, na insuspeita avaliação de uma advogada inglesa. Lá, imperam práticas de tortura e rituais de humilhação. Os detentos vivem nus e sem acesso a sanitários, tendo que evacuar no chão da cela e dormir ao lado ou por sobre os excrementos.

As solitárias, a que são condenados rotineiramente sem razão específica, os obrigam a ficar de cócoras dias seguidos, nus, expostos a um ar condicionado, em que são colocadas substâncias que, aspiradas, provocam náuseas, levando-os a vomitar e evacuar e a dormir por sobre os detritos. Os depoimentos são obtidos nessas circunstâncias, a partir de confissões forjadas, que resultam em julgamentos piores que os ocorridos em Nuremberg, onde o direito de defesa, quando há, é mera encenação.

A Law Society tem, inclusive, conclamado os advogados ingleses a não participarem desses julgamentos por considerá-los verdadeira farsa. Muitos dos detidos não têm sequer identidade. Mas não é só. Também na Europa tem havido violações sistemáticas aos direitos humanos. Ainda segundo a advogada inglesa, jovens muçulmanos são freqüentemente detidos em aeroportos. Há indisfarçável preconceito racial e religioso. As casas dos muçulmanos são invadidas sem acusação formal e o dinheiro que muitos economizam para visitar Meca anualmente é confiscado nos aeroportos da Europa.

Também o representante dos Estados Unidos naquele encontro, o presidente da American Bar Association (ABA), Robert Gray Junior, confirmou as denúncias de Guantânamo. E informou que a ABA tem orientado o Congresso norte-americano para que tenha cautela na apreciação de medidas emanadas da Casa Branca a pretexto de lutar contra o terrorismo. Elas ameaçam a democracia.

Disse que, após o 11 de setembro, foram editadas diversas leis nos Estados Unidos que não atendem à tradição democrática do país. Afirmou, por exemplo, que a ABA é contrária ao código militar de Justiça em vigor, sustentando que, hoje, no Iraque, os americanos promovem torturas em níveis ainda maiores que as do tempo de Saddam Hussein.

Por essa razão, propôs a formação de uma comissão independente para sindicância do que está acontecendo no Iraque. E informou que em breve será feito ao presidente dos Estados Unidos e aos presidentes de associações de advogados de todo o mundo pormenorizado relato da situação na baía de Gantânamo. Deixou claro que será um choque para a opinião pública mundial. Pelo relato prévio que ouvi, não tenho dúvidas.

O presidente da ABA propõe e a OAB desde já se associa a essa iniciativa um movimento mundial pela preservação do Estado democrático de direito. A luta contra o terror não pode ter, como contrapartida, o estabelecimento de um Estado de Terror, o que seria (e é) uma contradição em termos. Seria um retrocesso desastroso, que mergulharia a humanidade numa era de trevas, comprometedora de todo o processo civilizatório. Nada menos”.