Busato: sociedade deve pressionar Poder Público por mudanças
Ponta Grossa (PR), 10/09/2004 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, ao ser homenageado hoje (10) pela Assembléia Legislativa do Paraná com o título de Cidadão Honorário do Estado, convocou a sociedade civil organizada “a exercer o papel simultâneo de pressionar o Poder Público e auxiliá-lo na busca de transformações políticas, econômicas e sociais”. Ele salientou que os problemas sócio-econômicos brasileiros “dependem exclusivamente de determinação política”.
“A OAB compreende que não se muda aos solavancos uma estrutura sócio-econômico, por mais injusta, mas entende também que é preciso ousar, avançar, arrostar perigos e afirmar corajosamente posições”, sustentou Busato, durante a homenagem prestada pela Assembléia, que se deslocou de Curitiba a Ponta Grossa. A condecoração de Cidadão Honorário do Estado do Paraná foi proposta pelo deputado Jocelito Canto. Busato é natural de Caçador (SC), mas vive há muitos anos em Ponta Grossa, onde constituiu sua família e exerce a advocacia.
Em seu discurso de agradecimento, o presidente nacional da OAB lembrou que o Brasil é uma das “nações mais atrasadas do planeta, e isso nos envergonha”. Destacou que o País era até pouco tempo atrás a oitava economia mundial, “mas jamais conseguimos estabelecer a mesma equivalência no plano social”. Diante desse quadro, ele exortou a sociedade civil a pressionar o governo e dividir com ele as responsabilidade pelas transformações necessárias.
Busato destacou as lutas que a entidade dos advogados vem travando há anos pelos avanços sociais no País, assim como pela reforma do Judiciário - que tramita há doze anos no Congresso Nacional, lembrou - e contra a proliferação dos cursos de Direito e por melhoria de sua qualidade do ensino jurídico. “Sabemos que a reforma do Judiciário não é a reforma dos nossos sonhos, mas é a reforma possível, que incorpora poucos, mas mesmo assim alguns avanços”, observou, destacando entre eles o controle externo do Judiciário previsto no texto básico.
Ele lembrou, nesse contexto, que temas inquietantes do cotidiano brasileiro atual - como violência,drogas, criminalidade urbana, rebeliões de presos, corrupção e conflitos fundiários - se devem em parte à inoperância do Judiciário. “E essa inoperância gera impunidade que, por sua vez, gera ambiente propício à violência, à corrupção, criminalidade organizada e deterioração das instituições”, afirmou.
O presidente da OAB salientou que quando se fala em melhoria no funcionamento operacional de um poder está-se falando em verdade no aperfeiçoamento do Estado democrático de Direito. “E é dentro dessa busca de aprimoramento que se insere a Campanha Nacional em Defesa das Prerrogativas da Advocacia”, destacou ele, referindo-se ao ato que será lançado no próximo dia 22 em todo o País pelo Conselho Federal da OAB. Busato concluiu observando que considera os ataques a essas prerrogativas “um sinal perigoso que pode resultar no enfraquecimento da profissão e, conseqüentemente, da cidadania”.
Eis a íntegra do discurso do presidente nacional da OAB feito logo após ser homenageado pela Assembléia Legislativa do Paraná:
"É com grande emoção que recebo este título de Cidadão Honorário do Paraná, que me está sendo outorgado pela Assembléia Legislativa deste Estado, nesta cerimônia enriquecida pelas ilustres presenças dos senhores parlamentares, Diretoria do Conselho Federal, detentores de mandato na Ordem dos Advogados do Brasil já nominados, além de magistrados, membros do Ministério Público e prezados colegas advogados.
A todos, renovo meus agradecimentos, com especialidade ao deputado Jocelito Canto, que teve a iniciativa de propor esta homenagem, aprovada pela unanimidade de seus pares.
Saibam que a guardarei como uma das mais significativas que tenho tido a oportunidade de receber em minha vida pública, sobretudo porque conferida por representantes do Estado ao qual me radiquei e a que uni o meu destino pessoal e profissional.
Sou natural de Caçador, Santa Catarina, mas há muitos anos vivo aqui, em Ponta Grossa - e é aqui que crio meus filhos e exerço e continuarei a exercer meu ofício de advogado. Sem falsa modéstia, sinto-me aquém desta homenagem, cuja outorga atribuo à generosidade dos parlamentares paranaenses e à circunstância de estar presidindo, desde fevereiro deste ano, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
E é nessa dupla condição - de presidente da OAB e não apenas na do cidadão Roberto Busato - que quero aproveitar o ensejo desta cerimônia e dirigir algumas palavras aos ilustres amigos e autoridades aqui presentes, traçando um breve balanço destes sete meses à frente da presidência da OAB. Tenho, desde então, buscado honrar a máxima de José Martí, segundo a qual “a melhor maneira de dizer, é fazer.”
E creio que temos dito e feito coisas importantes.
Cheguei a este cargo quebrando alguns de seus padrões clássicos de referência. Sou um advogado do interior do país, que milita fora do tradicional eixo Rio-São Paulo-Brasília, que habitualmente fornece os presidentes do Conselho Federal da OAB.
Minha eleição colocou o Brasil interiorano e sulista no mapa político-institucional do país, já que a OAB dele faz parte, mesmo sendo instituição sem viés partidário ou ideológico. Nossa ideologia, como tenho repetido, não é nem de direita, nem de esquerda: é a da cidadania, voltada para o combate à exclusão social e à ampliação de direitos.
Outra singularidade foi a de ter sido eleito antes de completar 50 anos de idade, como o mais jovem presidente da história da OAB, depois de, por dois mandatos sucessivos, ter exercido cargos de direção na entidade ? de diretor-tesoureiro e de vice-presidente.
São circunstâncias que em mim repercutem de modo a aumentar a percepção de responsabilidade que o cargo impõe.
Já em minha posse, comprometi-me em reafirmar o papel histórico da OAB, de tribuna da cidadania, sem prejuízo de sua missão corporativa, de defender os legítimos interesses da advocacia.
Sendo a advocacia uma profissão singular, cuja natureza e objetivos lhe conferem múnus público, não há propriamente conflitos entre as duas vertentes de ação que mencionei. São complementares.
O advogado, não importa a dimensão de sua ação profissional, é um homem público, comprometido com a defesa da sociedade e a busca de justiça. E esse é um compromisso estatutário da OAB.
Nosso ofício está visceralmente vinculado à existência de uma ordem jurídica estável e ao Estado democrático de Direito. De outra forma, como cumprir com êxito a missão de trabalhar pela justiça?
Não é por outro motivo que, ao longo da história do Brasil, sempre que as trevas do arbítrio rondaram os céus da Pátria, a advocacia se colocou na trincheira de defesa da liberdade e da democracia, arrostando todos os perigos.
Hoje, felizmente, não mais vivemos o pesadelo do arbítrio. Mas os desafios continuam – e, de certa forma, tornaram-se mais densos, complexos e sofisticados. O que temos diante de nós é a necessidade de dar conteúdo ético e social à palavra democracia. Sem esse conteúdo, ela não passa de abstração jurídica.
Foi dentro desse posicionamento que criticamos em junho passado o inexpressivo aumento do salário mínimo, chamando a atenção do Presidente da República para a sua inconstitucionalidade, já que não atende aos requisitos estabelecidos no item IV, do artigo 7° de nossa Carta Magna.
Esse dispositivo determina que o salário mínimo preencha as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. E isso, hoje, como no passado, notoriamente não ocorre, perpetuando essa espantosa anomalia, a que todos nos acostumamos, estranhando apenas quando alguém vem a público denunciá-la. E eu o fiz ao ocupar a tribuna do Supremo Tribunal Federal, na posse de seu novo presidente, Nélson Jobim, em junho passado, quando a Ordem, em nome da sociedade civil, se dirige aos três Poderes da República, ali representados.
Dei na ocasião esse testemunho crítico, que alguns estranharam, mas que, no curso dos meses, acabou reconhecido pelo governo e pelo Congresso, que passaram a buscar medidas compensatórias para atenuar a exigüidade do salário mínimo.
Nosso propósito, em relação ao governo - qualquer governo 61630;, é sempre o de contribuir. Mas não o fazemos com elogios ou lisonjas, que nada somam, mas através da crítica sincera e construtiva. É esse nosso compromisso institucional - e é isso o que a sociedade espera de nós: franqueza e objetividade. Alguns governantes não compreendem bem esse papel e reclamam. Imaginam uma OAB subserviente e submissa.Desconhecem sua índole e subestimam o valor de uma crítica isenta e desinteressada.
Mas não nos desviaremos de nossa missão, mesmo ao preço de não sermos bem compreendidos. Não somos aúlicos. E, como advogados, temos compromisso apenas e tão-somente com a cidadania - e apenas a ela devemos satisfações e prestamos vassalagem.
Comprometi-me também em meu discurso de posse em lutar pelo aprimoramento do ensino jurídico, há muito deteriorado, tornando-se um fator a mais na crise de justiça em nosso país.
A proliferação de faculdades de Direito desqualificadas, desprovidas de professores credenciados e até de instalações físicas para abrigar seus alunos, tornou-se praga em todo o Brasil, desserviço à cidadania, atentado ao interesse público. Sem mão-de-obra qualificada, como supor o aprimoramento da prestação jurisdicional no país, meta fundamental da reforma do Judiciário?
Tratava-se, como disse na ocasião em que tomei posse, de recompor os alicerces da profissão, corroídos pela ganância de mercadores do ensino, comprometidos tão-somente com lucros fáceis, desconhecedores do sentido missionário da educação e do Direito.
Ainda naquele mês de fevereiro, dias após a posse, estivemos com o ministro da Educação, Tarso Genro, para pleitear providências urgentes em relação àquele tema. E fomos atendidos. O ministro suspendeu temporariamente a homologação dos processos de abertura de novos cursos de Direito e comprometeu-se a promover rigorosa fiscalização nos cursos já em funcionamento.
Desde então, tem mantido diálogo constante com a OAB para o encaminhamento dessa matéria. E nos propôs a assinatura de convênio para que a OAB participe não só dos estudos de novas diretrizes para os cursos de Direito, mas assessore também o MEC com sugestões objetivas para regenerar esse quadro.
De nossa parte, estamos prontos a continuar colaborando, mesmo porque o avanço que a Ordem conseguiu nesses sete meses do meu mandato foi extremamente maior do que os avanços tão arduamente lutados pelos meus antecessores - sem lograr o atual sucesso nesta luta que estamos encetando, ao ponto de que outros Conselhos Federais, de profissões regulamentadas, tenham solicitado para que a OAB seja a interlocutora para melhoria do Ensino Superior.
Nossa administração herdou dos que me antecederam a luta pela reforma do Judiciário, que tive a oportunidade de acompanhar desde o nascedouro, no início dos anos 90. O projeto de reforma já parcialmente votado pelo Senado chegou ao Congresso há doze anos, e passou desde então por sucessivas transformações, nem sempre para melhor.
Sabemos que não é a reforma dos nossos sonhos, mas é a reforma possível, que incorpora poucos, mas mesmo assim alguns avanços. Destaco a adoção do controle externo administrativo como um dos seus pontos mais importantes, além do princípio da quarentena e do fim do nepotismo. Constituem, como disse, um primeiro passo. Outros virão, e a Ordem não esmorecerá nessa peleja.
Grande parte dos temas inquietantes do cotidiano brasileiro atual - violência, drogas, criminalidade urbana, rebeliões penitenciárias, corrupção administrativa, conflitos fundiários - tem, entre os fatores que os tensionam, a inoperância do Poder Judiciário. E essa inoperância gera impunidade, que, por sua vez, gera ambiente propício à violência, à corrupção, à criminalidade organizada e à deterioração das instituições.
Quando falamos em reforma do Judiciário, estamos tratando de algo bem mais abrangente que mudanças pontuais no funcionamento operacional de um Poder. Estamos falando do aperfeiçoamento do próprio Estado democrático de Direito.
E é dentro dessa busca de aprimoramento do Estado democrático de Direito que se insere a campanha nacional em defesa das prerrogativas da advocacia, que a OAB lançará este mês. Consideramos que os ataques a essas prerrogativas são um sinal perigoso e podem resultar no enfraquecimento da profissão.
Se o advogado não pode atuar com independência e liberdade, o que está em risco é a democracia e a cidadania. E essas prerrogativas têm sido ameaçadas ciclicamente de supressão, a pretexto de combate à criminalidade.
Como disse Ruy Barbosa, “legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado”. Sem elas, não há justiça, nem cidadania. Se há maus profissionais, que não honram esses pressupostos, a solução não é tomá-los pelo todo e a pretexto deles punir a coletividade, até porque são minoria.
A OAB, no que concerne ao cumprimento dos deveres éticos e legais, tem sido implacável nas sanções disciplinares aos infratores, sem deixar de lhes assegurar ampla defesa. Sabemos da distinção com que nossa atividade é qualificada na Constituição, o que muitos nos honra. Mas sabemos também que a contrapartida inapelável é o sagrado compromisso com a ética. Esse o dever máximo da advocacia, que resume e contém todos os demais.
Outra luta constante da OAB tem sido nos fóruns externos -onde se discutem - e decidem - os novos rumos da advocacia e da justiça, num mundo em veloz processo de globalização. O Brasil, segundo colégio de advogados do Ocidente, atrás apenas dos Estados Unidos, tem pouca tradição nesses embates internacionais.
Mas, numa realidade geopolítica dinâmica e complexa como a atual, é impensável continuar de costas para o mundo. Daí nosso empenho em ocupar esses espaços internacionais e contribuir para que o Brasil tenha sua importância geoestratégica efetivamente reconhecida.
Cremos que isso vem acontecendo gradualmente.
De julho para cá, estivemos em eventos importantes para a advocacia continental e transcontinental. Debatemos, no início daquele mês, a respeito dos desafios da advocacia latino-americana por ocasião do bicentenário do Colégio de Advogados de Lima, no Peru.
Em agosto, estivemos em Escorial, na Espanha, num painel com representantes da União Européia e Américas, discutindo cooperação internacional à luz dos princípios de multilateralidade estabelecidos após a Segunda Guerra Mundial, hoje ameaçados pela potência hegemônica vitoriosa na Guerra Fria, os Estados Unidos.
Em Genebra, nesses primeiros dias de setembro, discutimos a auto-regulamentação dos serviços jurídicos e transfronteiriços por parte das Ordens de Advogados Organizadas. Lá, debatemos com o Presidente da American Bar Association (ABA) e com o Batonier da França, em evento que reuniu mais de mil advogados e mais uma centena de Presidentes de Organizações representativas de Advogados dos cinco Continentes, em Congresso Mundial, promovido pela Union Internationale des Avocats (UIA), onde fui distinguido como único latino- americano a proferir conferência naquele que é o maior Congresso Mundial de Advogados.
A OAB afirmou mais uma vez com serenidade e firmeza suas posições e princípios, nem sempre acordes com as dessas mega-entidades, e foi reconhecida e respeitada em sua importância. Não tratamos a advocacia, no Brasil, como serviço meramente comercial ? e sim, como determina a Constituição Federal, como função essencial à administração da Justiça. Isso, freqüentemente, nos expõe à incompreensão dentro de nosso próprio país, gerando eventualmente dificuldades de entendimento com o próprio Ministério das Relações Exteriores. Que dizer então com relação àquelas mega-entidades,voltadas para a defesa dos grandes escritórios internacionais?
Temos exercido papel de liderança na América do Sul no tocante a este tema da auto-regulamentação dos serviços jurídicos. E temos nos empenhado pela capacitação dos advogados brasileiros em direito internacional, para que se envolvam nesse debate, que tende a se aprofundar e a impor novas demandas no mercado de trabalho.
São temas de grande importância para a nova geopolítica do planeta, que se desenha a partir do fato consumado da globalização, gostemos ou não dela. E nossa determinação é a de nos fazermos presentes, difundindo e defendendo nossos interesses e pontos de vista.
Temos sustentado desde a posse que o Brasil vive um dos momentos mais importantes de seus cinco séculos de história. Estabelecemos os fundamentos de uma bela civilização, marcada pela pluralidade étnica e cultural. Éramos até há pouco a oitava economia do planeta. Circunstancialmente, em face da crise econômica, devemos estar em 14º lugar. Mas jamais conseguimos estabelecer a mesma equivalência no plano social. Nesse quesito, somos uma das nações mais atrasadas do planeta. E isso nos envergonha.
Nossos conflitos, porém, são perfeitamente equacionáveis. Não se fundam em questões étnicas ou religiosas. Têm viés sócio-econômico, cujas soluções estão ao nosso alcance e dependem exclusivamente de determinação política. Creio que este momento chegou e cabe à sociedade civil organizada o papel simultâneo de pressionar o Poder Público e auxiliá-lo na busca das transformações políticas, econômicas e sociais.
A OAB compartilha da esperança do povo brasileiro em transformações pacíficas, dentro da lei e da ordem, que conduzam à inclusão social. Compreende que não se muda aos solavancos uma estrutura sócio-econômica, por mais injusta. Mas entende também que é preciso ousar, avançar, arrostar perigos, afirmar corajosamente posições. A exclusão social no Brasil reclama urgência.
Prezamos o superávit fiscal, mas prezamos mais ainda o superávit social. E o que pleiteamos é que se dê a este, ao menos, a mesma importância que se dá àquele.
Neste momento em que, com muita honra e emoção, recebo a cidadania honorária paranaense, são estas as palavras que deixo à reflexão dos senhores representantes do valoroso povo deste Estado, bem como a meus colegas e operadores do universo do Direito aqui presentes.Reitero os meus agradecimentos e peço a Deus que me ajude a estar à altura desta homenagem.Muito obrigado".