Artigo: Armadilha autoritária

segunda-feira, 23 de junho de 2008 às 12:05


Brasília, 23/06/2008 - O artigo "Armadilha autoritária" é de autoria do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, e foi publicado na edição de hoje (23) do jornal Correio Braziliense:


"Dois anos não foram suficientes para definir uma regra capaz de resolver de uma vez por todas o grave problema das dívidas que estados e municípios contraíram decorrentes de ações judiciais movidas contra a administração pública, conhecidas como precatórios. Foi esse o tempo que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado gastou para encaminhar ao plenário, sem que se esgotassem as discussões em torno das propostas apresentadas, o substitutivo ao projeto de emenda Constitucional nº 12. A só um lado da questão interessa manter as coisas como estão - governadores e prefeitos pouco interessados em honrar decisões judiciais em favor de trabalhadores, pensionistas, donas-de-casa e cidadãos comuns que ousaram lutar por seus direitos na Justiça.


Feitas as contas, com base no que em breve poderá ser definido por emenda constitucional, são remotíssimas as chances de essas pessoas receberem aquilo que a Justiça já lhes assegurou, transferindo para filhos, netos, bisnetos e trinetos alguma esperança. Ou esperança nenhuma. Sendo assim, os movimentos organizados, as manifestações públicas e a abnegação de inúmeros credores terão sido em vão? Veja-se o caso das senhoras tricoteiras dos precatórios, movimento surgido em Porto Alegre e tragicamente marcado pela morte de seis delas no acidente do Airbus da TAM, que completa um ano no dia 17 de julho. O destino era São Paulo, onde elas iriam participar de um ato público.


A lógica perversa que se tenta aplicar ao pagamento dos precatórios, eternizando a possibilidade de quitação dessas dívidas, já foi chamada, inúmeras vezes, de calote oficial. Mas não ofendeu ou mesmo sensibilizou nem a governadores nem a prefeitos. Ninguém quer pagar a conta, seja sob a alegação de que se trata de matéria do passado e que nada tem a ver com isso (como se os cidadãos vivessem num mundo sem calendários), seja porque prefere retirar dividendos eleitorais dos recursos públicos de que dispõem e aplicar o velho golpe do devo, não nego, pago quando quiser.


De onde se pode concluir que a questão transcende a simples negação do fato jurídico e da coisa julgada. O que se está construindo, sem que a sociedade tenha tido tempo e oportunidade para reagir, é um instrumento político de um autoritarismo sem precedentes. Os administradores públicos irresponsáveis e mal-intencionados (e não são poucos) terão meios constitucionais para perseguir, chantagear e intimidar seus adversários de acordo com os humores da ocasião.


Basta, por exemplo, lhes dar na telha desapropriar bens e imóveis de adversários políticos e reduzir proventos de servidores, aposentados e pensionistas, ou simplesmente não pagar seus compromissos, na certeza de que não teriam que pagar nada. Transfere-se, assim, a dívida para outra geração de sucessores políticos. Confisca-se e, talvez um dia, os netos dos entes lesados venham a receber alguma coisa. Uma simulação feita pela Ordem dos Advogados do Brasil, com base nas propostas aprovadas até agora, revelou que quem entrar na fila dos precatórios em 2009, por exemplo, levará de 15 a 100 anos para receber. Em muitos casos, a dívida vira pó.


Em raciocínio simples, é exatamente isso o que será votado no plenário do Senado, onde deve ser forte a pressão dos governadores e prefeitos sobre suas bancadas. Mais do que premiar o mau administrador, que se vê livre de qualquer obrigação, a proposta de emenda Constitucional nº 12, tal como está, vai premiar aqueles que não cumprem as decisões judiciais, zombam da Justiça e ferem a dignidade da pessoa humana. Leiloar as necessidades dos cidadãos é não compreender os princípios da democracia. Renunciar ao pagamento de direitos conquistados na Justiça é ignorar o que significa Estado Democrático de Direito.


Cuidar da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e do equilíbrio da relação Estado e cidadão é fundamental para quem quer parecer sério aos olhos da comunidade internacional.


Não é possível presenciar, passivamente, que se transfira para a Constituição uma situação que guarda muita semelhança com a do empresário concordatário do passado que deixava seus credores à míngua e depois propunha acordos imorais por intermédio de terceiros. Em suma, este não é um problema apenas de ordem jurídica e política, mas também moral. Como cumprir decisões judiciais não tem apelo eleitoral e significa menos recursos disponíveis para outros fins mais vantajosos politicamente, este lado moral do problema deve ser considerado."