Editorial: Protocolo absurdo

quinta-feira, 20 de março de 2008 às 10:09

São Paulo, 20/03/2008 – O editorial “Protocolo absurdo” foi publicado na edição de hoje (20) do jornal O Estado de S. Paulo:

“Numa iniciativa no mínimo despudorada, o governo de Mato Grosso e a cúpula do Judiciário estadual firmaram um protocolo por meio do qual a instituição passou a receber 20% sobre “o valor total das execuções efetivamente convertidas em receita aos cofres públicos”. Proposto pela Secretaria da Fazenda, o acordo foi assinado em 2003 pelo governador Blairo Maggi (PR) e pelo então presidente do Tribunal de Justiça (TJ) de Mato Grosso, desembargador José Ferreira Leite, e esteve em vigor até a semana passada, quando, denunciado pelo jornal Folha de S.Paulo, foi cancelado.

Pelo protocolo, o TJ se comprometeu a orientar os juízes mato-grossenses a dar “máxima atenção possível” aos processos abertos pelo governo estadual contra contribuintes, “especialmente nas ações executivas fiscais de maior valor”. Com essa medida, a Secretaria da Fazenda esperava elevar a arrecadação, repassando parte do aumento ao Judiciário. O problema é que o protocolo tornou a Justiça parte interessada nas ações fiscais, comprometendo a isenção da instituição e pondo sob “suspeição genérica” a magistratura estadual, como afirma a OAB.

Ao julgar uma ação fiscal o juiz, evidentemente, pode dar ganho de causa a qualquer das partes - autoridades fazendárias ou contribuintes. O direito ao repasse de 20% do valor total das execuções fiscais convertidas em receita, previsto pelo acordo entre o Executivo e o Judiciário, seria assim um “estímulo” para que a magistratura decidisse contra o contribuinte.

Para avaliar a força desse “estímulo”, basta ler dois ofícios encaminhados aos juízes de Mato Grosso pela Corregedoria-Geral de Justiça. No primeiro, datado de novembro de 2007, o órgão deu o prazo de 60 dias para que os magistrados avaliassem os processos de cobrança arquivados nos dois anos anteriores, a fim de apurar os valores “a que o Judiciário teria direito”, nos termos do protocolo. No segundo ofício, expedido no mesmo mês, o órgão pediu que os processos listados seguissem “rumo à solução final, qualquer que seja o resultado” e deu seis meses de prazo para que as comarcas informassem “em quantos deles houve pagamento ou parcelamento da(s) dívida(s), assim como os respectivos valores”.

Em resposta às duras críticas ao protocolo, o governo e o Judiciário estaduais invocaram argumentos “de ordem financeira” que são - não se pode deixar por menos - um verdadeiro primor de desfaçatez. Por causa da extensão do Estado, diz o corregedor-geral de Justiça, desembargador Orlando de Almeida Perri, os recursos de que o Judiciário dispõe para custear diligências dos oficiais de Justiça são insuficientes.“Estas viagens custam dinheiro. Na época em que foi firmado o protocolo, estabeleceu-se a porcentagem porque não se sabia quais eram os valores a repassar. Foi a maneira que se encontrou para enfrentar o problema”, afirma o corregedor.

“Nosso território é muito grande e, por falta de recursos para as diligências, as ações estavam paralisadas. O TJ faz parte do Estado. E os recursos vão para o Poder Judiciário, não para os juízes. O repasse não compromete a independência das decisões”, diz o procurador-geral do Estado, José Virgílio do Nascimento. As autoridades estaduais também alegaram que essa foi a forma encontrada para custear a assistência judicial gratuita. “A gratuidade beneficia 70% dos processos que tramitam na Justiça de Mato Grosso”, diz o corregedor-geral de Justiça.

Por maior que seja a carência de recursos da Justiça mato-grossense, nada justifica a medida adotada para aumentá-los. Ainda que não se possa suspeitar de que os 20% de “participação nos lucros da Fazenda mato-grossense” beneficiem diretamente o juiz que dá a sentença, é claro que o interesse da corporação pode influenciar sua decisão. Por isso, o protocolo, nos termos em que foi assinado, maculou a imagem de isenção e independência da instituição - um fato tão grave que levou a OAB a cogitar de pedir intervenção na Justiça e no governo estaduais. Além disso, tivesse o acordo um mínimo de base moral e legal, a Justiça não o teria cancelado assim que foi divulgado pela mídia.”