Editorial: Bolso alheio sob a lupa

segunda-feira, 07 de janeiro de 2008 às 10:18

Belém (PA), 07/01/2008 – O editorial “Bolso alheio sob a lupa” foi publicado na edição de hoje (07) do jornal O Liberal (PA):

“Governos mostram quem são em plenitude quando metem a mão no bolso alheio para elevar impostos ou para controlar a movimentação financeira de cidadãos quaisquer. E mostram a que vieram quando, ao contrário, são resistentes em meter a mão nos próprios bolsos para, em nome da transparência, evitar a farra de despesas.

Na semana passada, anunciou-se um mecanismo que obriga instituições financeiras a repassarem semestralmente à Receita Federal dados sobre a movimentação financeira de pessoas físicas e jurídicas. Instrução normativa já publicada no Diário Oficial da União prevê que os bancos informarão regularmente à Receita sobre todas as movimentações de pessoas físicas que atinjam R$ 5 mil no semestre, em conta corrente ou poupança. Para pessoas jurídicas, o valor é de R$ 10 mil.

Depois disso, tem-se conhecimento de que o mesmo governo que põe a lupa sobre o dinheiro do contribuinte adiou por seis meses a entrada em vigor de um decreto que aperta os controles sobre os repasses federais feitos por meio de convênios com Estados, municípios e entidades sem fins lucrativos, como organizações não-governamentais (ONGs) e sindicatos. O valor anual desse convênios: cerca de R$ 12 bilhões, previstos no Orçamento-Geral da União.

O decreto deveria passar a valer a partir do dia 1º deste mês e tem o objetivo de inibir irregularidades na aplicação final dos recursos e reforçar os instrumentos de fiscalização e transparência sobre tais repasses, alvos corriqueiros de escândalos e desvios.

Mas já estamos em 2008. O ano é de eleições. Aqui está o motivo do adiamento.

O novo prazo para a entrada em vigor do decreto coincide com o período em que o governo pode firmar convênios de repasses com municípios. O Código Eleitoral prevê que, nos três meses que antecedem eleições, a União fica proibida de fazer transferências voluntárias a Estados e municípios, a não ser em convênios de obras e serviços já assinados e em andamento ou situações de emergência.

Pronto. Feitas as contas, checados os prazos, comparados os motivos, chega-se facilmente à conclusão de que a moral, como já dizia Franz Kafka (escritor tcheco, 1883-1924), muda de porto em porto; ou de eleição em eleição, se quiserem. Isso é péssimo. Revela que as vontades se subordinam a conveniências, que deveriam ser rejeitadas quando o interesse público prevalece.

Nada demais fiscalizar, controlar, manter sob vigilância a movimentação financeira. Mas não se pode, sob qualquer hipótese, ferir a lei. Nesse sentido, é mais do que oportuna a advertência do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Marco Aurélio Mello, para quem o mecanismo criado pelo governo afronta a Constituição.

O ministro é claríssimo: ''É flagrantemente inconstitucional, salta aos olhos o conflito com a Constituição. Certamente a assessoria jurídica da Receita não foi ouvida. Se o Supremo for provocado, e a OAB já sinalizou neste sentido, deverá se manifestar contrário. Se quiserem, modifiquem a Constituição, mas enquanto ela estiver em vigor será respeitada. É o preço da democracia.''

Se o governo, nos procedimentos de sua competência, agisse independentemente das circunstâncias eleitorais em defesa do erário, seria até possível admitir instruções normativas como a da Receita Federal. Mas é demais pretender que a sedução pelo voto passe incólume.

Pior para os contribuintes, que assim se vêem permanentemente expostos a situações em que não preponderam, efetivamente, a intenção de defender os cofres públicos e colocá-los a salvo da gastança. O que prepondera, isto sim, é a vontade de eleger, de pavimentar o caminho eleitoral de aliados, de manter partidos sob a órbita de interesse dos que têm a chave do cofre. O que prepondera, enfim, é a falta de transparência.”