Direito de defesa é sagrado, afirma Britto a jovens advogados
Belo Horizonte (MG), 26/04/2007 – “O contato sigiloso entre o advogado e seu cliente é tão sagrado para a produção de justiça quanto o do padre com o fiel no segredo inviolável do confessionário, ou do paciente com seu psicanalista no âmbito do consultório”. A afirmação foi feita hoje (26) pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, em discurso na abertura do Congresso Nacional de Jovens Advogados, do qual participaram também o presidente da Seccional da OAB de Minas Gerais, Raimundo Cândido Junior, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha. Cezar Britto fez uma defesa veemente das prerrogativas da advocacia e observou que ao protestar recentemente contra procedimento da Polícia Federal, no âmbito da Operação Furacão, que impediu que advogados tivessem acesso aos autos e contatos com seus clientes, “a OAB manifestou-se em defesa do sagrado direito de defesa; não pediu – e não pede – que se deixe de investigar e punir os que delinqüiram”.
No discurso, o presidente nacional da OAB destacou sobretudo a contribuição da advocacia na consolidação do Estado Democrático de Direito e pediu o engajamentos dos jovens advogados na luta em defesa da democracia e das instituições jurídicas. Observando que o oxigênio do advogado é a lei e a liberdade, Cezar Britto encerrou seu pronunciamento anunciando que transformou em permanente uma comissão interna que trata de temas pertinentes à causa do jovem advogado: a Comissão Nacional de Apoio aos Advogados em Início de Carreira.
A seguir, a íntegra do discurso do presidente nacional da OAB, Cezar Britto, no Congresso Nacional de Jovens Advogados:
“Meus caros colegas,
Jovens advogadas e advogados
É sempre um grande prazer estar em contato com pessoas que se iniciam nesta nossa carreira.
Elas transmitem a energia da confiança e do entusiasmo, indispensável para vencer os desafios e os embates da vida, sobretudo numa carreira movimentada como a nossa, freqüentemente movida a adrenalina.
A advocacia definitivamente não é um território de amenidades. Seu fascínio reside exatamente no fato de que lida com o contraditório, o adverso, a condição humana em estado de conflito.
No mar da turbulência em que navegamos, o leme, a bússola, é a justiça. É a ela que nos apegamos para garantir a plena defesa e o devido processo.
Por pior que seja um indivíduo, por mais abjeto que tenha sido o ato praticado, o ideal de justiça lhe garante o direito de plena defesa, além de um defensor qualificado para exercê-lo, garantindo a ambos sigilo em suas conversações.
E é esse o pilar do que hoje chamamos de Estado Democrático de Direito, conquista maior da civilização humana, obtida em séculos e séculos de lenta sedimentação do pensamento filosófico, da ciência jurídica e da ciência política.
Qualquer ato punitivo que ignore esses procedimentos ritualísticos elementares poderá ser chamado de qualquer coisa - menos de justiça.
Justiça pressupõe o ato jurídico perfeito, que se exerce e materializa no rito já descrito, cuja base, repito, é o sagrado direito de defesa.
Justiceirismo é outra coisa, bem diferente de justiça, e mais próxima do sentimento da vingança, da desforra, da arbitrariedade.
Quando milícias armadas ocupam os morros cariocas para enfrentar traficantes, preenchem o vazio deixado pelo Estado omisso. São inicialmente saudados pelos moradores, que, no seu desamparo profundo, ignoram que estão trocando seis por meia dúzia.
Não estando submetidos à lei e aos ditames do Estado democrático de Direito, aqueles personagens gradualmente reproduzem – e freqüentemente agravam - as práticas que em tese se dispuseram a combater.
Da mesma forma, os que saúdam práticas de punição sumária dos esquadrões da morte constatam que estão também expostas a elas.
Constatam algo que, para nós, advogados, é um dogma inegociável: fora do Estado democrático de Direito não há salvação.
Sempre que o combate ao crime deixa de observar esta estrita relação – e dentro dela os direitos humanos -, a vitória acaba sendo do crime.
Disso podemos falar com autoridade.
Nenhuma outra instituição neste país está historicamente mais envolvida na luta contra o crime, em todas as suas múltiplas e variadas formas de manifestação – o crime comum, o crime político, o crime organizado, o crime desorganizado -, que a Ordem dos Advogados do Brasil.
Nos 77 anos de nossa história, já enfrentamos dois poderosos regimes de exceção – o Estado Novo e a ditadura militar de 64 -, que se estabeleceram sob o mesmo argumento: de que a democracia não seria eficaz para a gerência dos conflitos humanos; de que o autoritarismo organiza melhor as coisas, mantém melhor a ordem pública.
Vã ilusão.
Em curto espaço de tempo – e essa é uma realidade mundial -, constata-se que o autoritarismo cristaliza desigualdades, impõe retrocessos na ordem social, deseduca e despolitiza a sociedade, enfraquece e desmoraliza a Justiça e suas instituições.
Impõe perdas éticas e morais irreparáveis.
A eficácia das ações repressivas do Estado não depende, como alguns equivocadamente supõem, da subtração da justiça; do atropelo ao processo legal; do desprezo ao direito de defesa.
Muito pelo contrário: a defesa da justiça só terá eficácia se se der dentro do Estado Democrático de Direito. Fora dele, repito, não há salvação.
Não há ambiente mais propício ao crime e ao obscurantismo que aquele em que a justiça é ignorada, desprezada, descumprida.
Teríamos nessa hipótese um estado de anomia incompatível com o Estado Democrático. Incompatível com a Justiça. Incompatível com a civilização.
Nós, da OAB, ao defendermos, dentro de nosso compromisso estatutário, a Constituição e as instituições republicanas, estamos dizendo sim à legalidade – e, nesses termos, dizemos não ao crime, às transgressões aos direitos humanos, às violações às prerrogativas da advocacia.
E não há direito humano mais elementar que o direito de defesa. É um direito que, como já disse, não se nega ao mais abjeto dos criminosos.
Ao defender o respeito a esse direito, não estamos pedindo à polícia que seja negligente com o crime. Muito pelo contrário: queremos rigor nas investigações, sem qualquer tipo de complacência.
E quanto mais alta a patente do infrator maior o rigor na aplicação da lei.
A recente Operação Furacão, da Polícia Federal, detendo diversas personalidades de projeção na sociedade brasileira – algumas ocupantes de cargos na estrutura do próprio Poder Judiciário -, gerou grande e positivo impacto na opinião pública. Compreensível impacto.
De nosso ponto de vista, aplaudimos quando a polícia deixa de cuidar apenas do pequeno infrator e direciona suas antenas para o grande infrator.
Mas, tanto num caso como no outro, do pequeno ou grande infrator, sua ação tem que estar nos limites da lei – ou se estará também praticando o crime que queremos coibir.
A percepção de que a cultura da impunidade ainda predomina em nosso país leva muitas vezes a sociedade a ansiar por ações justiceiras, que transgridem a verdadeira justiça e levam o combate ao crime a igualar-se ao próprio crime.
É compreensível esse desabafo por parte de quem não tem responsabilidades institucionais. Mas é inaceitável que os que a têm endossem essa conduta. É absolutamente inaceitável!
A OAB, ao protestar contra o procedimento da Polícia Federal, de impedir que os advogados dos detidos na Operação Furacão tivessem acesso aos autos e contatos com seus clientes, manifestou-se em defesa do sagrado direito de defesa.
Não pediu – e não pede – que se deixe de investigar e punir os que delinqüiram.
Muito pelo contrário: juntamos nossas vozes ao clamor da sociedade brasileira por um país mais justo - e por uma Justiça que não puna apenas o pobre, os destituídos de meios para acessá-la.
O Direito é uma ciência – e corresponde a uma das mais elevadas conquistas da civilização no curso da história humana. E o Direito prevê a defesa como princípio elementar da Justiça.
Dentro do chamado devido processo legal, o direito elementar do detido (seja lá quem for) é o de saber do que é acusado – e, simultaneamente, de dispor de um advogado para vocalizar sua defesa, com base na lei.
O contato sigiloso entre o advogado e seu cliente é tão sagrado para a produção de justiça quanto o do padre com o fiel no segredo inviolável do confessionário. Ou do paciente com seu psicanalista no âmbito do consultório.
No momento em que se permita a violação desse contato e desse sigilo, atropela-se o que há de mais sagrado na privacidade humana.
Quando a polícia coloca grampos em escritórios de advocacia, violando o sigilo da atividade advocatícia, viola o artigo 133 da Constituição, que estabelece: (abre aspas)
“O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo in-vi-o-lá-vel por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”
Não são palavras minhas: é a Constituição da República Federativa do Brasil quem o diz.
Cabe, portanto, ao Supremo Tribunal Federal, instância máxima de defesa da Constituição, manifestar-se, diante dos atos truculentos denunciados pela imprensa.
Silenciar, em tais circunstâncias, é favorecer a cultura autoritária e permitir que se estabeleça, que convença a sociedade de que é necessário abrir mão de direitos para assegurar ganhos.
Quando isso acontece, não há ganhos. Há apenas perdas. Não Estado democrático de Direito pela metade, assim como não há meia gravidez.
Não se pode confundir o advogado com os eventuais erros de seus clientes. Não pode a polícia ou quem quer que seja tratá-lo como se fosse o próprio delinqüente. Não pode vedar-lhe acesso ao cliente ou ocultar-lhe as causas da prisão.
O advogado não é inimigo da polícia; os dois podem - e precisam - andar juntos para o bem do Brasil, e é isso que queremos.
É preciso evitar erros como os que ocorrem em várias investigações criminais - e não sou eu quem está dizendo isso: é a Constituição, é o Supremo Tribunal Federal, que, por meio do ministro Cezar Peluso, determinou que haja regras claras, em que os presos sejam ouvidos diretamente por seus advogados, sem interfones ou outras restrições, e que os advogados tenham acesso ao processo.
E é disso que temos tratado com autoridades do Executivo. Não pedimos por ninguém em especial. Pedimos respeito ao Estado democrático de Direito e às instituições jurídicas, nos termos do que determina o Estatuto da OAB e da Advocacia.
O que tratamos com as autoridades o fazemos a céu aberto, sem subterfúgios e com base nos pressupostos que aqui estou expondo. Tratamos de um dos fundamentos elementares da cidadania: as prerrogativas da advocacia - na verdade, prerrogativas mais do cidadão que do advogado.
É ele – o cidadão - o maior prejudicado quando se suprime o direito de defesa. Não se questiona o mérito das prisões – ao contrário, aplaude-se o trabalho investigativo da Polícia Federal.
Há muito clamamos por polícia eficiente, investigativa, cidadã. Mas não queremos que se confunda eficiência com arbitrariedade; rigor com truculência; justiça com linchamento.
Não há qualquer conflito entre eficiência e legalidade. Muito pelo contrário – e repito: só há eficiência se houver legalidade. Caso contrário, em algum momento, a transgressão será cobrada – e a sociedade será chamada a repará-la.
Ao tempo da ditadura, nós, advogados, enfrentamos a truculência da polícia política, indo aos porões em busca de contato com nossos clientes, vítimas da ilegalidade. Corremos riscos.
Alguns de nós sofreram na carne agressões, ameaças, danos à integridade física. A luta pelo restabelecimento do instituto do habeas corpus mobilizou a sociedade civil e deu início à luta pela redemocratização.
Não podemos permitir retrocesso em tais conquistas. E não podemos perder de vista que a legalidade exige vigilância permanente.
Não é apenas nas ditaduras que os direitos humanos são ameaçados e violados. Também nas democracias, se não houver vigilância cívica – essa vigilância que nós, da OAB, historicamente temos exercido –, a barbárie se estabelece.
Não podemos trair a distinção que nos conferiu o constituinte de 1988, e que nosso Estatuto ratificou, estabelecendo que a função social é a mais importante e edificante característica da advocacia ¾ seu valor máximo e seu mister.
Não dissociamos o combate ao crime da defesa dos direitos humanos. Quando isso acontece, não tenham dúvida: o crime venceu.
Queremos que essa Comissão seja nossa contribuição mais efetiva – e eficaz – na luta da sociedade brasileira contra o crime e pela paz social.
Vivemos etapa decisiva na formação política do povo brasileiro. Sinto que todos esses embates compõem o nosso processo de amadurecimento como nação e sociedade.
Ao tempo do autoritarismo, pensávamos que o simples restabelecimento da democracia traria por gravidade tudo o que necessitávamos.
Hoje, vemos que não é bem assim. A democracia é apenas o ponto de partida, o ambiente em que o país deve ajustar os seus ponteiros, corrigir suas falhas e disparidades. As soluções não brotam espontaneamente.
Precisam ser debatidas, decantadas, levando-se em conta a pluralidade e o contraditório. Somente assim serão consistentes, duradouras, verdadeiras.
Não há ambiente mais propício para que esse processo se desenvolva – e aí vale citar Winston Churchill, que dizia ser “a democracia o pior dos regimes, excetuados todos os outros”.
Nada de pior poderia nos acontecer agora, neste estágio evolutivo em que já demos passos decisivos, que ceder à tentação autoritária.
A OAB quer os jovens advogados engajados nessa luta em defesa das instituições jurídicas e do Estado democrático de Direito.
Por isso, estou transformando em permanente a comissão interna que trata dos temas pertinentes às causas de vocês: a Comissão Nacional de Apoio aos Advogados em Início de Carreira.
O autoritarismo impõe perdas e danos gerais à sociedade, mas sobretudo a nós, advogados, cujo oxigênio é a lei e a liberdade - e mais que qualquer outra atividade profissional precisa de instituições sólidas e livres para se desenvolver.
Muito obrigado”.