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Defasagem de 104% na tabela do IR agride Estado Democrático de Direito

terça-feira, 14 de janeiro de 2020 às 08h52

Por Breno de Paula

A defasagem na tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) acumula 104% desde 1996, segundo o Sindifisco Nacional (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal).

Atualmente, não precisa declarar Imposto de Renda quem ganha até R$ 1.903,98 por mês. A defasagem acima de 100% indica que a faixa de isenção deveria mais do que dobrar para compensar as perdas com a inflação nos últimos 23 anos. Segundo o Sindifisco Nacional, os contribuintes que recebem até R$ 3.881,65 por mês deveriam estar isentos do IRPF. 

No fim do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que pretende ampliar a faixa de isenção do IR, mas não detalhou qual devem ser os critérios adotados para o cálculo nem qual a nova faixa salarial isenta de pagamento do imposto.

Além da faixa de isenção, o governo pretende reduzir a alíquota máxima do Imposto de Renda para pessoas físicas dos atuais 27,5% para 25%.

Se a injustiça fosse corrigida, nenhum contribuinte do IR cuja renda tributável mensal fosse inferior a R$ 3.881,65 pagaria o imposto.

Essa diferença penaliza principalmente aqueles contribuintes de baixa renda que estariam na faixa de isenção, mas que, devido à defasagem existente, entram na faixa da menor alíquota, de 7,5%.

Temos outras anomalias. A dedução das despesas com educação foi sendo limitada ao longo dos últimos anos e hoje podem ser deduzidos apenas os pagamentos do ensino formal, dos cursos de especialização e de outros cursos profissionalizantes.

Como a inflação reduz o poder aquisitivo da moeda, é necessário que sejam atualizados (corrigidos) os valores mencionados na sistemática do IRPF, para se salvaguardar os valores destinados ao mínimo existencial. Sem isso, tributa-se manifestação de capacidade contributiva inexistente ou apenas formal, dado que substancialmente os efeitos da inflação distorcem a proteção que, em especial, a faixa de isenção pretendera estabelecer.

Em suma, as constatações acima ofendem o conceito constitucional de renda como valor disponível à existência digna do contribuinte e de seus dependentes (CF, artigo 153, III); a capacidade contributiva, que só se manifesta acima do mínimo existencial (CF, artigo 145, parágrafo 1º); o não confisco, que obsta a apropriação pelo Estado de valores necessários à satisfação desse mínimo (CF, artigo 150, IV); a dignidade humana; a proteção à família, a razoabilidade.

O conceito de renda estabelece seus pressupostos na Constituição da República de 1988, onde os elementos que compõem a capacidade tributária ativa estabelecem os parâmetros macros da exação tributária, conforme dispõe o professor Paulo de Barros Carvalho (2009, p. 665):

Podemos dar por consente que, em todas as imposições tributárias, os alicerces da figura impositiva estarão plantados na Constituição da República, de onde se irradiam preceitos pelo corpo da legislação complementar e da legislação ordinária, crescendo em intensidade a expedição de regras em escalões de menor hierarquia.

O debate ganha ainda mais relevo quando se verifica, na Constituição Federal, os instrumentos sociais considerados como regras e princípios e, dentre estes últimos, vale assinalar o princípio do mínimo existencial, instrumento de aplicação na forma de interpretação de normas constitucionais.

Conceitua-se mínimo existencial, segundo Rawls, um modelo de Justiça em que os homens estabelecem entre si um contrato social; aqui, cada um desconhece qual será sua posição na sociedade (véu da ignorância), com a determinação de princípios básicos de funcionamento da sociedade e de distribuição de bens.

Para Rawls, é preciso entender os dois princípios básicos imanentes nesse processo: i) todas as pessoas possuem o mesmo sistema de direitos e liberdade; ii) somente é possível alterar o esquema de liberdades para beneficiar os mais desfavorecidos. Esse princípio é denominado de princípio da diferença.

Nessa linha, John Rawls explica:

Observese que existe, ademas, outra importante distincion entre los principios de justicia que especifican los derechos y las libertades básicas em pie de igualdad y los principios que regulan los asuntos basicos de la justicia distributiva, tales como la liberdad de desplazaimiento y la igualdad de oportunidades, las desigualdades sociales y económicas y bases sociales del respeto a si mismo.

Un principio que especifique los derechos y libertades basicas abarca la Segunda clase de los elementos constitucionales esenciales. Pero aunque algun principio de igualdad de oportunidades forma parte seguramente de tales elementos esenciales, por ejemplo, un principio que exija por lo menos la liberdad de desplazamiento, la eleccion libre de la ocupacion y la igualdad de oportunidades (como la he especificado) va mas alla de eso, y no sera un elemento constitucional. De manera semejante, si bien un minimo social que provea para las necesidades basicas de todos los ciudadanos es tambiem un elemento esencial, lo que he llamado el “principio de diferencia” exige mas, y no es un elemento constitucional esencial.

Na direção de Rawls, significa dizer que na ordem principiológica é possível o asseguramento das condições mínimas de existência digna. De acordo com Simone de Sá Portela:

O mínimo existencial não possui dicção constitucional própria, devendo-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios da igualdade, do devido processo legal, da livre iniciativa, nos direitos humanos, nas imunidades e privilégios do cidadão. Carece de conteúdo específico, podendo abranger qualquer direito, ainda que não seja fundamental, como o direito à saúde, à alimentação, etc, considerado em sua dimensão essencial e inalienável.

Ainda merece considerar o seguinte:

A proteção do mínimo existencial se dá com o Estado de Polícia. Alivia-se a tributação dos pobres e transfere-se para o Estado a proteção dos mesmos. Há a crítica da proporcionalidade, e se inicia com o cameralismo a defesa da progressividade tributária, com limite no mínimo existencial, com a retirada da incidência tributária sobre as pessoas que não possuem riqueza mínima para o seu sustento.

Nas palavras de Ricardo Lobos Torres, o mínimo existencial é como “um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. Necessário à existência digna, o mínimo existencial passa a ser direito fundamental vinculado aos princípios constitucionais, sendo importante a lei para sua garantia.

Francisco Caballero assim leciona sobre o mínimo existencial, admitindo:

Admito, com a doutrina alemã, que o direito fundamental só garante um “mínimo” prestacional, por exemplo, o “mínimo existencial”. E resulta também que o meio ambiente adequado é tão somente uma pequena parte de alguns direitos fundamentais (direito à vida e integridade física e moral, direito à intimidade domiciliar, direito de propriedade). Pois bem, resulta difícil identificar supostos no que o “mínimo meio ambiental” de alguns direitos fundamentais forme também parte do “mínimo prestacional”, derivado destes mesmos direitos. E, para esses casos, o legislador e a Administração normalmente tem disposto uma proteção mais além dos mínimos: nestes casos, em particular já não exigirá uma proteção individualizada “ex constitutione”, se não “ex lege”.

O mínimo existencial é, portanto, uma garantia constitucional da efetividade dos direitos fundamentais, exigido por parte do Estado, tendo um status negativus libertatis e um status positivus libertatis.

Axel Honneth diz: “A experiência de privação de direitos se mede não somente pelo grau de universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos”. Nessa direção, busca-se um instrumento de tributação redistributiva, a partir da interpretação e aplicação de princípios constitucionais.

A defasagem da correção da tabela de IR em 95,4% tem como destinatário tributário a manifestação de capacidade contributiva inexistente ou apenas formal de cidadãos. E incompatível com o conceito constitucional de renda como valor disponível à existência digna do contribuinte e de seus dependentes (CF, artigo 153, III); a capacidade contributiva, que só se manifesta acima do mínimo existencial (CF, artigo 145, parágrafo 1º); o não confisco, que obsta a apropriação pelo Estado de valores necessários à satisfação deste mínimo (CF, artigo 150, IV); a dignidade humana; a proteção à família, a razoabilidade.

Konrad Hesse, juiz da Suprema Corte alemã, no seu clássico Força Normativa da Constituição, assim definiu tais situações: “A necessidade não conhece princípios”.

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Breno de Paula é membro da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, professor de Direito Tributário da Universidade Federal de Rondônia e doutorando e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).


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