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Artigo: Crime de desacato não é compatível com a Constituição Federal

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018 às 17h39

Brasília – A revista eletrônica especializada Conjur publicou, nesta sexta-feira (23), artigo assinado pelo presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia da OAB – Jarbas Vasconcelos – e pela integrante da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB Distrito Federal – Lizandra Nascimento Vicente – sobre o crime de desacato a servidor público.

Leia a íntegra da publicação abaixo ou diretamente no site da Conjur.

Crime de desacato não é compatível com a Constituição Federal

Por Jarbas Vasconcelos e Lizandra Nascimento Vicente

O tipo penal do desacato disposto no artigo 331, do Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal), não é compatível com os princípios fundamentais da Carta Cidadã. A norma sob análise prescreve que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela implica em pena de detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

Em que pese a imposição de sanção, o normativo legal não especifica o que seria desacatar, trazendo uma normatização indeterminada.

A consequência dessa imprecisão acarreta na reprimenda da liberdade de expressão de cidadãos que são compelidos a manterem-se inertes diante de condutas praticadas por agentes públicos por receio de cometerem crime.

Ao reconhecer a importância da liberdade de expressão, Canotilho[1] ressalta que ela propicia o debate intelectual e o confronto de opiniões num compromisso crítico permanente. Trata-se de prerrogativa que possibilita a participação dos cidadãos na argumentação pública. Para Habermas, o Estado deve assegurar o princípio da soberania popular por meio de mecanismos de proteção de liberdades de opinião e de informação. [2]

Nesse contexto, deve-se extirpar do ordenamento jurídico leis que tolhem a liberdade de expressão — tal como o desacato —, posto que tal direito se caracteriza como instrumento de representação dos anseios do povo.

De outra sorte, normativos que sobrepõem o Estado face ao particular somente devem existir em hipóteses e razões justificáveis, o que não é o caso da previsão do tipo penal em questão. Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Relatório[3], repugnou a proteção em demasia conferida ao servidor público em detrimento da população, haja vista que “a aplicação de leis de desacato para proteger a honra dos funcionários públicos que atuam em caráter oficial outorga-lhes injustificadamente um direito a proteção especial, do qual não dispõem os demais integrantes da sociedade.”[4]

Na assentada, defendeu que esse tratamento desigual inverte “o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo.”[5] Dessa forma, estando os funcionários públicos sujeitos a maior escrutínio da sociedade, o controle de suas condutas deve ser exercido por toda a população sem empecilhos.

E, por fim, rechaçou a aplicação de leis de desacato dado que “invertem diretamente os parâmetros de uma sociedade democrática (...). A proteção dos princípios democráticos exige a eliminação dessas leis nos países em que elas ainda subsistam. (...) essas leis representam enquistamentos autoritários herdados de épocas passadas, e é preciso eliminá-las.”[6]

Ressalta-se que o Estado brasileiro, enquanto signatário da Convenção Americana, assumiu o compromisso de adotar medidas legislativas, visando à solução de antinomias normativas limitadoras à realização dos direitos fundamentais[7], razão pela qual o entendimento esposado pela Comissão Interamericana deve ser adotado e incorporado ao ordenamento jurídico pátrio.

Além do desacato violar o direito fundamental da igualdade e liberdade de expressão, tem-se que ele mostra incompatível com o preceito republicano, que pressupõe a responsabilidade do chefe de governo e/ou do Estado pelos seus atos, impondo-se a prestação de contas de suas condutas.

À constatação de que o tipo penal do desacato obstaculiza o controle das atividades dos agentes públicos, tem-se o enfraquecimento da prerrogativa de fiscalização do cidadão. Subverte-se, assim, a titularidade do poder político em uma sociedade democrática que, ao invés de recair sobre aos eleitores, é outorgada aos eleitos e aos detentores de funções públicas.

Nesse mesmo sentido, observa-se ainda que o tipo penal aberto do desacato possibilita a ocorrência de arbitrariedades por parte dos agentes públicos. Isso porque a jurisprudência reconhece que o “esforço intelectual de discernir censura de insulto à dignidade da função exercida em nome do Estado é por demais complexo, abrindo espaço para a imposição abusiva do poder punitivo estatal.”[8]

Pontua-se que a concepção normativa propicia a violação ao princípio da legalidade consagrado no artigo 5º, XXXIX, da CF. Verifica-se, portanto, que o legislador não se desincumbiu devidamente da sua tarefa legislativa, posto que previu o crime de desacato de forma inespecífica, possibilitando o enquadramento das mais diversas condutas em um mesmo tipo.

A ausência de tipificação do crime de desacato não impede a responsabilização do agente que ofenda a honra de um servidor público, pois tal conduta pode ser devidamente tutelada pelos tipos penais da injúria, difamação e calúnia, a depender do enquadramento da prática realizada (REsp 1.640.084/SP).

À luz dessas considerações, espera-se que esse instituto jurídico seja abolido do ordenamento quando do julgamento da ADPF 496, proposta pelo Conselho Federal da OAB, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso e subscrita por esses advogados, na qual a Corte Constitucional irá se manifestar quanto à não recepção do artigo 331 do Código Penal pela Constituição Federal.

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[1] CANOTILHO, J. J. Gomes; MACHADO, Jónatas E. M. “Constituição e código civil brasileiro: âmbito de proteção de biografias não autorizadas”. In JÚNIOR, Antônio Pereira Gaio; SANTOS, Márcio Gil Tostes. Constituição Brasileira de 1988. Reflexões em comemoração ao seu 25º aniversário. Curitiba: Juruá, 2014, p. 132

[2] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 165.

[3] Disponível em http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=132&lID=4. Acesso em 20/02/2018.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] arts. 2º e 29 da Convenção.

[8] STJ. Recurso Especial n. 1.640.084-SP. Relator Min. Ribeiro Dantas.


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