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Artigo no Jota: Princípio constitucional do não retrocesso

quinta-feira, 6 de agosto de 2015 às 18h18

Brasília – Confira o artigo de autoria do direitor tesoureiro da OAB Nacional, Antonio Oneildo Ferreira, publicado nesta quinta-feira (06), pelo portal jurídico Jota.

Princípio constitucional do não retrocesso

Por Antonio Oneildo Ferreira

Advogado e Diretor Tesoureiro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a concretização dos direitos sociais passou a ser debatida com mais força no mundo jurídico e político, com questões acerca da efetivação do texto constitucional na transformação da realidade brasileira.

Na década de 90 nossa Constituição começou a sofrer ataques contra os direitos sociais, via emendas constitucionais e medidas provisórias. No intuito de avaliar a concretização dos direitos constitucionais e de defender as conquistas sociais surge o princípio do não retrocesso, que nas palavras de Canotilho [1]:

[…] quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fática), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.

Apesar da falta de sistematização do assunto, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, considera-se como consenso conceitual que o princípio “é a vedação ao legislador de suprimir arbitrariamente a disciplina constitucional ou infraconstitucional de um direito fundamental social” [2]. Em complemento, significa que o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estatais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, anulem, revoguem ou aniquilem pura e simplesmente esse núcleo essencial [3].

Vale registrar que o princípio em estudo foi desenvolvido na Alemanha e em Portugal, partindo da constatação de que ao dever positivo do Estado existe uma imposição de abstenção. Significa dizer que quando há uma obrigação em concretizar um direito positivado nasce para o Estado um dever de não adotar medidas que destitua ou flexibilize de forma desarrazoada as conquistas alcançadas.

Neste sentido, o acórdão n. 39/84 da Corte Constitucional Portuguesa:

[…] Que o Estado não se dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe está cometida, isso só poderá ser objecto de censura constitucional, em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas, quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir a tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção.

Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa – a criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica –, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a proteção directa da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. (…) Quer isto dizer que, a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação, positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social [4].

Segundo o jurista Ingo Sarlet [5], o princípio constitucional do não retrocesso, no âmbito do direito brasileiro, está implícito na Constituição Federal de 1988, e decorre do princípio do Estado democrático e social de direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, da segurança jurídica, da proteção da confiança, entre outros. O Supremo Tribunal Federal ao tratar do princípio:


[…] A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculos a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de terná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.- (ARE 639337 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125).

Não cabe aqui tratar de todos os princípios apresentados pelo jurista [6], mas um breve recorte será feito ao princípio da dignidade da pessoa humana que, nas palavras de Gisela Gondin Ramos, é “o ponto de partida na construção dos direitos fundamentais, estes só podem ser assim qualificados se e quando forem expressão perfeita daquela, e não apenas nos estreitos limites das normas jurídicas, mas no amplo espaço da realidade pela qual todos e cada um de nós somos, indiscutivelmente, responsáveis” [7].

Na nossa Carta Magna, pode-se considerar que o princípio constitucional do não retrocesso social está expresso no art. 3º, inciso II, que diz: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (…) II – garantir o desenvolvimento nacional”. Sintetiza o jurista Felipe Derbli:

A particularidade do princípio da proibição de retrocesso social está, pois, na prevalência do caráter negativo de sua finalidade. Dizemos prevalência porque existe, ainda que em menor escala, um elemento positivo na finalidade do princípio em tela: é dever do legislador manter-se no propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas (incluindo-se as orçamentárias), o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais, através da garantia de proteção dessa concretização à medida que nela se evolui. Vale dizer, proibição de retrocesso social não se traduz em mera manutenção do status quo, antes significando também a obrigação de avanço social [8].

Denota entender que o desenvolvimento nacional, visto como progresso, é um objetivo fundamental do Estado que deve ser constantemente realizado. Pela lógica, a previsão constitucional do princípio do não retrocesso se dá pelo caráter negativo do dispositivo em comento, vez que há, ainda que subjetivamente, o dever de não permitir um retrocesso na ordem social, devendo o Estado agir positivamente na realização e na garantia dos direitos fundamentais.

Nesse horizonte civilizatório de defesa e fortalecimento do princípio constitucional do não retrocesso, há três projetos, dentre vários outros, no âmbito do Congresso Nacional Brasileiro, que reputamos expressivamente danosos e ofensivos à marcha civilizatória capitaneada por esse princípio, quais sejam: (i) a terceirização nas relações de trabalho; (ii) o Congresso Nacional e a demarcação de terras indígenas; e, (iii) a redução da maioridade penal.

A Terceirização nas Relações de Trabalho. O Projeto de Lei n. 4.330/2004, que dispõe sobre os contratos de terceirização e as relações de trabalho dela decorrentes, aprovado na Câmara dos Deputados e agora aguardando apreciação no Senado Federal, é a expressão de um movimento dentro do parlamento que tem total descompasso com as ações afirmativas e de inclusão social que tão positivamente tem impactado a sociedade brasileira.

Vale reforçar que os direitos sociais estão sujeitos ao princípio constitucional do não retrocesso, como garantia social da valorização do trabalho – um dos fundamentos constitucionais do Brasil como Estado Democrático de Direito [9]– e implementação do princípio da dignidade da pessoa humana.

De igual modo o caput do art. 7º da Constituição Federal estabelece em seus incisos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Não se pode permitir que emendas constitucionais ou normas infraconstitucionais tenham o condão de suprimir, diminuir ou neutralizar os direitos trabalhistas já garantidos ou que privem o trabalhador de obter melhores condições sociais.

Atualmente, no que se refere à terceirização no Brasil, aplica-se no âmbito jurídico-trabalhista a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que assim dispõe:

Contrato de prestação de serviços. Legalidade.

I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se vínculo diretamente com o tomador de serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei 6.019, de 3.174).

II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei 7.102, de 20/6/83) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistam a pessoalidade e subordinação direta.

IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da lei 8.666, de 21/6/93).

Verifica-se que a referida súmula autoriza a prática da terceirização com reservas, uma vez que em regra a prática é considerada ilegal, mas em um segundo momento são apresentadas as hipóteses de contratação de serviços de vigilância, de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador como passíveis da terceirização, desde que não exista a pessoalidade e a subordinação direta.

A proposta do projeto de lei aprovada na Câmara dos Deputados e em apreciação no Senado Federal é a de acabar com a barreira jurídica à contratação de prestadores de serviços, que poderiam exercer funções ligadas a atividades “inerentes, acessórias ou complementares” à atividade econômica do contratante, ou seja, passaria a ser legal a prática de terceirização em atividades-fim.

Alguns fatores podem ser levados em consideração para afirmar que o projeto de lei trata-se de uma burla para a flexibilização das leis trabalhistas, levando em conta que, na maioria das vezes, a prática é utilizada por grandes empresas para reduzir as folhas de pagamento. Quanto aos funcionários, que estão sob a responsabilidade de empresas menores, ficam expostos a violações como: exploração de trabalho análogo ao escravo, calotes de salários, jornadas excessivas e a negação de outros direitos e benefícios sociais.

É inconteste que o projeto afronta diversos preceitos constitucionais, tais como (i) os princípios da dignidade da pessoa humana, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, da erradicação das desigualdades sociais e da promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação; (ii) o valor social do trabalho, previsto no art. 1º, inciso IV da Constituição Federal; (iii) os direitos e garantias fundamentais da redução dos riscos inerentes ao trabalho e a liberdade de organização e atuação sindical; e (iv) a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, que tem por fim assegurar existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social.

E, ainda, afronta de forma grave o princípio constitucional do não retrocesso, ao permitir que serviços contratados mediante terceirização sejam ampliados, mesmo diante do problema histórico de precariedade dos direitos trabalhistas quando comparados ao regime de contratação convencional regido pela Consolidação das Leis do Trabalho.

O Congresso Nacional e a Demarcação de Terras Indígenas. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, em trâmite na Câmara dos Deputados, que tem o objetivo de incluir dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e a ratificação das demarcações já homologadas, estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei, é outra infeliz iniciativa parlamentar, motivada exclusivamente por interesses econômicos, que tem o visível objetivo de inviabilizar totalmente a demarcação de terras indígenas em nosso país, numa clara afronta aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Um manifesto público contra a PEC 215/2000 foi elaborado por organizações e movimentos sociais, indígenas, indigenistas e ambientalistas, juntamente com as Frentes Parlamentares de Apoio aos Povos Indígenas, em Defesa dos Direitos Humanos e Ambientalistas, segundo o qual:

[…] A PEC 215/2000 e seus apensos pretendem paralisar a demarcação de Terras Indígenas, a titulação de Territórios Quilombolas e a criação de Unidades de Conservação, bem como permitir a liberação de grandes empreendimentos dentro dessas áreas protegidas, tais como: hidroelétricas, mineração, agropecuária extensiva, implantação de rodovias, hidrovias, portos e ferrovias.

Se aprovada, a PEC 215/2000 resultará em consequências irreversíveis para os povos indígenas e as comunidades quilombolas, considerando que seus territórios são vitais para a sobrevivência física e cultural, além de contribuírem na preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, no contexto do aquecimento global [10].

A proposta fere claramente a separação de poderes [11], ao transferir as decisões sobre a demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo, e os direitos constitucionais dos povos indígenas, que são cláusulas pétreas na Constituição Federal.

Conforme preceitua o art. 231 da Carta Magna, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

É importante destacar que as terras indígenas, territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas, não são criadas com a demarcação, elas são apenas identificadas e delimitadas, para que os direitos originários previstos constitucionalmente sejam assegurados e respeitados. Com o realce de que essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215) ofensiva aos direitos dos povos indígenas colide frontalmente com o insculpido pelo constituinte originário de 1988 no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória, que determinou: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.

Ou seja, em vez do Parlamento Brasileiro ultimar a República a cumprir o mandamento constitucional emanado pelos pais da Constituição, em respeito a uma das matrizes fundantes da brasilidade, que é a indígena, age na contramão da história tentando o esvaziamento dos direitos originários assegurados. Também cabendo realce que o direito originário dos povos indígenas à terra é anterior à Constituição, como exceção à regra de que a Constituinte é o poder fundamental e instituidor de todos os direitos.

A aprovação da PEC 215 importaria, ainda, em violação à Convenção n. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1989), à Declaração das Organizações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2007), e à Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO. Apenas como exemplo, vale destacar, o art. 26 da Declaração das Organizações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que assim estabelece:

1. Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido.

2. Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido.

3. Os Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos a essas terras, territórios e recursos. Tal reconhecimento respeitará adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da terra dos povos indígenas a que se refiram.
Importa, assim, referida PEC 215, em grave violação ao princípio constitucional do não retrocesso, vulnerabilizando os direitos fundamentais dos povos indígenas.

A Proposta de Redução da Maioridade Penal. A Proposta de Emenda à Constituição n. 171/1993, que altera a redação do art. 228 da Constituição Federal, dentre os projetos elencados, é a que com maior intensidade promove a desagregação e a segregação social. A PEC 171 rompe com toda uma estrutura social construída a partir da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

A atual redação do artigo 228 prescreve que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.   O art. 60, § 4º, da Carta Magna, prevê que não poderá ser objeto de emenda à Constituição matéria tendente a diminuir, a limitar ou a reduzir um direito individual. Dessa maneira, torna-se intangível a maioridade penal aos dezoitos anos.

O critério adotado pela legislação penal brasileira para a escolha da idade do limite da maioridade penal, segundo Mirabete, foi o critério biológico:

[…] adotou-se no dispositivo um critério puramente biológico (idade do autor do fato) não se levando em contato o desenvolvimento mental do menor, que não está sujeito à sansão penal ainda plenamente capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Trata-se de uma presunção absoluta de inimputabilidade que faz com que o menor seja considerado como tendo desenvolvimento mental incompleto em decorrência de um critério de política criminal. Implicitamente, a lei estabelece que o menor de 18 anos não é capaz de entender as normas da vida social e de agir conforme esse entendimento [12].

No entanto, a Constituição Federal estabelece no próprio art. 228 que o menor de dezoito anos, em que pese ser penalmente inimputável, pode ser reeducado, nos termos da legislação especial: o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que prevê a prática de atos infracionais por adolescentes quando a conduta for tipificada como crime ou contravenção penal, sendo-lhe aplicável as medidas previstas no art. 112 do ECA [13].

Defende Alexandre de Moraes que “Essa verdadeira cláusula de irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em Juízo” [14].

O sistema carcerário há muito não cumpre sua função social e está longe de ser um ambiente de ressocialização, tornando-se, na verdade, um ambiente degradante e brutal para a população carcerária. O encarceramento do adolescente não é a solução, como o clamor popular julga ser, e nem mesmo essa era a intenção do legislador, tendo em vista que o Estatuto da Criança e do Adolescente adotou a Teoria da Proteção Integral [15], que enxerga a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e proteção.

Reduzir a maioridade penal é claramente um retrocesso social. É a readoção da teoria do menor infrator, na qual a criança e o adolescente só são percebidos quando estão em situação irregular, não estão inseridos dentro de uma família ou atentam contra o ordenamento jurídico. É querer inserir o menor em um ambiente degradante e que em nada contribui para solucionar o problema da marginalidade infantil. O sistema carcerário não é solução para nenhuma das mazelas que afligem nossa sociedade e, notadamente, em nada contribuirá para a superação das adversidades de nossas crianças e adolescentes em situação de risco. Essa proposta de redução da maioridade penal não aponta para a construção de uma sociedade mais justa, livre, fraterna e solidária. Pelo contrário.

Na realidade, o que se faz urgentemente necessário é a inserção do jovem, em situação de risco ou não, em ambientes que o proporcione educação e integração ao mercado de trabalho, com acesso universalizado ao esporte e ao lazer. Deve o Estado Brasileiro ampliar as políticas de inclusão e de afirmação social, visando oferecer um cenário de mais segurança e apoio à criança e ao adolescente.

Concluindo, diante das propostas legislativas apresentadas há dois horizontes bem definidos: ou a sociedade caminha em direção ao processo civilizatório de defesa à dignidade da pessoa humana e aos direitos sociais em respeito ao princípio constitucional do não retrocesso ou retorna à barbárie, onde a sociedade não é vista como detentora de direitos humanos e fica à mercê da instabilidade dos legisladores e da insegurança jurídica. Marcando, esses projetos, de forma indelével a encruzilhada entre a barbárie e a civilização.

______________________________________
[1] – CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed., 11 reimp. p. 338 e 339.
[2] – CUNHA, Jarbas Ricardo Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como norte para o desenvolvimento do direito à saúde no Brasil.
[3] – CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed., 11 reimp. p. 340.
[4] – Disponível em:. Acesso em: 22 jun. 2015.
[5] – SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em . Acesso em 22 jun. 2015.
[6] – a) O princípio do Estado democrático e social do Direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção da confiança e a manutenção de um nível mínimo de segurança contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um modo geral; b) O princípio da dignidade humana que, exigindo a satisfação – por meio de prestações positivas (e, portanto, de direitos fundamentais sociais) – de uma existência condigna para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a inviabilidade de medidas que fiquem aquém deste patamar; c) No princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais contido no artigo 5o, parágrafo 1o, e que abrange também a maximização da proteção dos direitos fundamentais. Com efeito, a indispensável otimização da eficácia e efetividade do direito à segurança jurídica (e, portanto, sempre também do princípio da segurança jurídica) reclama que se dê ao mesmo a maior proteção possível, o que, por seu turno, exige uma proteção também contra medidas de caráter retrocessivo, inclusive na acepção aqui desenvolvida; d) As manifestações específicas e expressamente previstas na Constituição, no que diz com a proteção contra medidas de cunho retroativo (na qual se enquadra a proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito) não dão contado universo de situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que, de resto, encontra fundamento direto no art. 5o, caput, da nossa Lei Fundamental e no princípio do Estado social e democrático de Direito; e) O princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito (além da sua íntima conexão com a própria segurança jurídica) impõe ao poder público – inclusive (mas não exclusivamente) com exigência da boa¬fé nas relações com os particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas; f) Os órgãos estatais, especialmente como corolário da segurança jurídica e proteção da confiança, encontram¬se vinculados não apenas às imposições constitucionais no âmbito da sua concretização no plano infraconstitucional, mas estão sujeitos a uma certa auto¬vinculação em relação aos atos anteriores. Esta, por sua vez, alcança tanto o legislador, quando os atos da administração e, em certa medida, dos órgãos jurisdicionais, aspecto que, todavia, carece de maior desenvolvimento do que o permitido pelos limites do presente estudo; g) Negar reconhecimento ao princípio da proibição do retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgãos legislativos (assim como o poder público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte.” In SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em < http://www.direitodoestado.com.br/rere/asp >. Acesso em 22 jun. 2015.
[7] – RAMOS, Gisela Gondin. Princípios jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 407
[8] – DERBLI, Felipe. O Princípio da Proibição do Retrocesso Social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 202.
[9] – Art. 1o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui¬se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
[10] – Disponível em: . Acesso em: 24 jun 2015.
[11] Art. 60, § 4o. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III – a separação dos Poderes.
[12] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2008 p. 214.
[13] – Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semi¬liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a IV.
[14] – MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
[15] –  Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá¬lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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