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Artigo: Desobediência civil

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005 às 07h00

Brasília,09/02/2005 - O artigo "Desobediência civil" é de autoria do jornalista Merval Pereira e foi publicado na edição de hoje (09) do jornal O Globo.

"O governo tem boas razões para temer que a insatisfação da sociedade civil com o aumento da carga tributária reverta em uma manifestação maciça de oposição na eleição presidencial do próximo ano, como aconteceu na capital paulista, onde a prefeita Marta Suplicy, embora bem avaliada, foi derrotada pelo atual prefeito José Serra em grande parte devido ao aumento extorsivo dos impostos municipais e da criação de um sem-número de novas taxas, o que lhe valeu o apelido de Martaxa.

Antes disso, porém, se o governo não agir rápido, é possível que um amplo movimento de desobediência civil vingue, capitaneado até mesmo por organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cujo presidente, Roberto Busato, em artigo recente, comparou o aumento da carga tributária a uma “nova derrama”, referindo-se aos tributos que Portugal cobrava do Brasil e que provocou a Inconfidência Mineira.

Segundo Busato, “era na área fiscal que o colonizador de então exibia na plenitude o seu espírito tirânico. A cobrança de um quinto, o quinto dos infernos, sobre toda a produção de ouro gerou revolta e indignação. Quem diria que, séculos depois, com o país já livre da tirania externa (mas subjugado a outro tipo de tirania, interna), um quinto nos soasse como amenidade? Hoje, pagamos em impostos algo próximo a um terço do que produzimos. E a contrapartida, a prestação de serviços, é a mais precária possível”.

Ele criou uma comissão na OAB, composta por tributaristas como Ives Gandra Martins e coordenada pelo ex-chefe da Receita Federal Osíris Lopes Filho, para fazer um estudo da carga tributária brasileira. Busato acusa o governo de ter ultrapassado os limites legais com a edição da Medida Provisória 232, que aumentou o Imposto de Renda e a Contribuição Social sobre Lucro Líquido dos prestadores de serviço tributados pelo lucro presumido.

Esses impostos, que no início do governo Lula eram calculados sobre 17% do faturamento das empresas, hoje já o são sobre 32% e passariam a ser sobre 40% se a medida provisória não tivesse sido adiada para novos estudos. Diante da reação da sociedade civil, o presidente Lula decidiu chamar para conversar representantes do empresariado. Ao mesmo tempo, ressurge a idéia do deputado Miro Teixeira de fazer uma Constituinte restrita — a ser aprovada por referendo no fim do ano, juntamente com o referendo sobre armamentos — para tratar apenas da reforma tributária.

Mesmo com a descentralização de impostos definida na Constituinte de 88, a fatia da União na arrecadação não encolheu, como seria natural num sistema federativo, devido a uma brecha deixada na Constituição pela qual o governo federal pôde criar as contribuições sociais, impostos que não têm que dividir com estados e municípios.

Em 1988, a única contribuição vigente era o Finsocial, que correspondia a 6,5% da arrecadação federal. Hoje, as contribuições respondem por 44% dessa arrecadação, inclusive a Confins, que o governo Lula aumentou de 3% para 7,6%, e que foi a grande responsável pelo aumento da carga tributária federal. Entre 1998 e 2003, na gestão de Fernando Henrique, a carga global saltou de 29,6% para 35,5% do PIB, alegadamente por conta do ajuste fiscal necessário para enfrentar as crises externas surgidas desde a segunda metade dos anos 90.

Há 20 anos, em 1985, os impostos compartilhados entre União, estados e municípios representavam 75% do total, enquanto 25% eram da União. Hoje, esse equilíbrio se transformou: os não compartilhados são 55% do total, e os compartilhados 45%. Com isso, em 2002 a União ficou com 69,2% da arrecadação, os estados, com 26,4%, e os municípios, com 4,4%, voltando, portanto, à situação que existia antes da reforma “radicalmente descentralizadora” da Constituição de 1988, quando a União arrecadava diretamente 70% da carga tributária nacional, o equivalente a 22,4% do PIB.

O atual governo aprofundou a estratégia iniciada no governo Fernando Henrique, o que fez a carga tributária passar de 28% do PIB em 1994 para 36% atualmente e, como se vê, crescendo. Segundo técnicos, a política tributária do atual governo federal privilegia, em um grau sem precedentes, a cobrança de contribuições sociais, que não são compartilhadas com outros níveis de governo, em prejuízo da arrecadação dos impostos de renda e, sobretudo, de produtos industrializados, repartidos através dos fundos de participação.

Essa centralização dos impostos no governo federal já está provocando um movimento de protesto dos governadores, especialmente os de oposição. Jorge Rachid, secretário da Receita Federal, garante que se a carga tributária ficar acima do nível da de 2002, que foi de 35,5% do PIB, “medidas de emergência” serão tomadas para compensar o aumento. Como em 2003 foi obtida uma pequena redução, interrompendo o crescimento da carga tributária, que ficou em 34,88% do PIB, mesmo se ela voltar a 35,5% terá havido um aumento de um ano para o outro.

O problema é que o governo trabalha com a premissa de que a carga tributária tem que ser do tamanho da despesa e, como a despesa do Estado vem aumentando, a tendência da carga é aumentar também. A reação da sociedade seria, portanto, contra o aumento dos gastos do Estado. O autor americano Henry David Thoreau foi o primeiro a teorizar sobre a desobediência civil, em seu ensaio de 1849. E também a colocá-la em prática.

A desobediência civil parte do princípio de que leis injustas não devem ser obedecidas. Henry Thoreau deixou claro em seu ensaio que se recusara a pagar impostos por não apoiar a escravidão e por ser contra a Guerra Mexicana, tendo sido preso por tal atitude. Com a decisão, queria se pronunciar “em termos práticos, como cidadão”.

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